quarta-feira, fevereiro 03, 2010

JOSÉ NÊUMANNE

A redenção passa pela dúvida, não pela fé

O ESTADO DE SÃO PAULO - 03/02/10


A morte do escritor americano J. D. Salinger, na semana passada, remete-nos a uma evidência que passou despercebida no último meio século: a era da rebeldia começou de fato na época de ouro, ou seja, contrariando a cronologia, os anos 60 tiveram início em 1951, ainda no comecinho do decênio anterior, o dos 50. Naquele ano foi lançado o romance O Apanhador no Campo de Centeio, um dos maiores êxitos de crítica e de vendas do mercado editorial mundial e, sem dúvida, uma obra de importância capital no cenário conturbado do século 20, que começou com uma carnificina nas trincheiras da Europa e terminou com a nova ordem mundial configurada na Guerra nas Estrelas. Além de ter vendido mais de 60 milhões de exemplares no planeta, ela exerceu em seus leitores influência comparável à de outros clássicos recentes, como O Estrangeiro, do franco-argelino Albert Camus, e Eichmann em Jerusalém - Relato sobre a Banalidade do Mal, da judia alemã Hannah Arendt.

A obra-prima de Camus, principal razão para que o autor se tornasse, aos 44 anos de idade, o mais jovem escritor a receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1957, foi editada em Paris nove anos antes da de Salinger. Graças a esse texto de qualidade incomparável, o filho de colonos brancos franceses (pés-pretos) na Argélia, de população de maioria árabe, foi recebido em Paris como um igual pelos filósofos existencialistas, que conquistariam mentes e corações no pós-guerra. A saga do protagonista, Meursault, entre o dia em que a mãe morreu e a data de sua execução por haver matado um árabe na praia, encantou o cosmopolita Jean-Paul Sartre, de quem Camus se tornaria amigo fraterno e, depois, desafeto figadal. Tuberculoso, este morreria aos 47 anos num acidente de automóvel, deixando a impressão de que sobreviveria como genial escritor, mas não como o pensador contestado por Sartre, que terminou trocando seu pensamento original pelo radicalismo do marxismo chinês de Mao Tsé-tung. Passados 50 anos da morte de Camus e 30 do concorrido enterro de Sartre, sobrevive a ética camusiana, que rompeu com o comunismo e execrou o terrorismo como uma forma de barbárie, meio século antes da derrubada das Torres Gêmeas pela Al-Qaeda de Bin Laden.

O Estrangeiro antecedeu na ficção a condenação de Camus, em artigos de sua autoria e editoriais que escreveu para o jornal da resistência à ocupação da França pelos nazistas, o Combat, ao sacrifício de vidas inocentes a pretexto de vingança política. O homicídio gratuito (atribuído ao sol inclemente na praia onde se deu o crime), principal evento da novela, é profético quanto aos atentados a bomba usados como represália ao colonialismo francês na libertação da Argélia e ao terrorismo suicida cometido pelos fundamentalistas muçulmanos no Oriente Médio e pelo resto do mundo afora. A equivocada adesão de Sartre à utopia sangrenta de Stalin, Mao, Fidel e Pol Pot em nada desvaloriza a importância de sua obra filosófica e muito menos a qualidade literária rara de um texto primoroso como As Palavras. Mas dos confrontos entre os ex-amigos ficou patente a razão profética do proletário pé-preto sobre o engano do nobre mestre-escola.

A amarga constatação do absurdo da condição humana, registrada na obra-prima de Camus, repetiu-se no texto seminal de Salinger, com uma diferença. Meursault era um cínico. E o niilismo de Holden Caulfield, o protagonista de 16 anos de idade de O Apanhador no Campo de Centeio, propagou a ilusão de que a juventude seria atributo suficiente para aprimorar o mundo e a humanidade. A capacidade do romancista americano de reproduzir, por escrito, a angústia dos adolescentes de seu tempo num dialeto de tribos até hoje reproduzido em praticamente todas as línguas faladas na Terra fascinou leitores e produziu prosélitos dessa crença no poder reformador da puberdade. O isolamento radical que o romancista se impôs por mais da metade de sua vida talvez possa ser o sinal do próprio inconformismo com os resultados funestos da semeadura de Caulfield. Ou não. Mas o fato é que Salinger não pode ser inculpado pelas consequências dela.

A saga política dos estudantes enfurecidos de Paris em 1968 não resultou no aprimoramento dos mecanismos do velho Estado Democrático de Direito das Revoluções Gloriosa e Americana, mais de dois séculos antes, mas em brutais tiranias de direita e esquerda. Símbolos cruentos da transformação do sonho em pesadelo foram o Khmer Vermelho, na Ásia, e a guerra suja da esquerda armada contra as ditaduras militares na América Latina.

A decantada revolução dos costumes lançada pelos requebros de Elvis Presley na América e pela eletrificação dos instrumentos dos Beatles e dos Rolling Stones na Velha Albion foi outro fiasco de Caulfield, simbolizado no assassínio do beatle John Lennon, na frente do prédio onde morava, em Nova York. O autor do lema que sintetizou o dilema - "o sonho acabou" - foi baleado por um fã que se disse inspirado no adolescente inconformado que Salinger inventara 29 anos antes. Ainda vale, pois, a lição de Nelson Rodrigues aos jovens: "Envelheçam, meus filhos!"

Nos anos 60, Hannah Arendt cobriu para a revista The New Yorker o julgamento do carrasco nazista Adolf Eichmann, capturado pelo serviço secreto israelense na Argentina. O livro resultante da cobertura, Eichmann em Jerusalém - Relato sobre a Banalidade do Mal, pode ter a resposta para as questões que atormentaram Camus e Salinger sobre o absurdo da condição humana e a dificuldade para superá-la. O mal não resulta da exceção monstruosa, mas é banal. Ao contrário do que escreveu Sartre, o inferno não são os outros, mas o fascínio doentio e irresistível que o próprio reflexo no espelho exerce sobre cada um de nós. A redenção passa pela dúvida desarmada, não pela fé cega, faca amolada.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista
do Jornal da Tarde

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