quarta-feira, fevereiro 10, 2010

JANIO DE FREITAS

A aliança


FOLHA DE SÃO PAULO - 10/02/2010



Já no primeiro teste a "aliança estratégica" Brasil-França, ou Lula-Sarkozy, exibe sua ficção, e as duas partes tomam posições, mais do que diferentes, contraditórias.
Ao aviso do Irã, no final da semana passada, de que pretendia começar o enriquecimento de urânio a 20%, o governo Obama despachou de imediato o seu secretário de Defesa, Robert Gates, ao encontro do presidente francês. Depois, discrição de ambas as partes sobre a conversa. Ou seja, nenhum sinal de que Sarkozy pudesse anunciar uma posição da França ao menos compreensiva com a decisão iraniana.
O enriquecimento de urânio a 20% começou ontem, tal como comunicara o governo de Ahmadinejad. Em represália, Estados Unidos e União Europeia deliberam sobre aumento das restrições e bloqueio ao Irã. Sarkozy não contradisse a integração francesa à política externa comum da UE, nem a ação dos Estados Unidos na ONU e fora dela pelas reações ao Irã.
O Brasil do governo Lula, contrariamente, por intermédio do ministro Celso Amorim manteve, apesar da nova decisão iraniana e de sua confrontação com o decidido pela ONU, a tese de que as portas não estão fechadas para negociações entre o Irã e os temerosos de seu desenvolvimento nuclear. Nem o Brasil se põe à margem das imaginadas negociações. O Brasil tem, portanto, a posição mais avançada a que pode chegar agora em favor do Irã, sem confronto direto com deliberações da ONU e com as posições de Estados Unidos e União Europeia.
Aliança estratégica pressupõe, antes de tudo, concepções muito assemelhadas dos problemas mais importantes, e o da utilização pacífica ou militar da energia nuclear é um dos mais relevantes. Daí, pressupõe atitudes de sentido também assemelhado naquelas questões. Sarkozy ficou onde sempre esteve e com quem sempre esteve. Seu pretenso aliado estratégico vai, porém, por outro caminho. Em cujo roteiro figura, logo à frente, uma etapa agora ainda mais complicada: a prevista visita de Lula ao Irã, como acertou com Ahmadinejad, em sua ida ao Oriente Médio no próximo mês.
Apesar das represálias e ameaças feitas ao Irã desde iniciado o seu projeto de energia nuclear, que repete ser para fins apenas pacíficos e sobretudo de medicina, o enriquecimento de urânio a 20% está muito distante do percentual necessário para ogivas nucleares, que americanos e europeus dizem ser o objetivo iraniano. O Brasil mesmo, por ora só autorizado a enriquecimentos nas faixas mínimas, pretende autorizações mais elevadas da ONU, inclusive pela necessidade, mais adiante, dos mesmos 20% ou mais. E não seria só para fins pacíficos, estando já em perspectiva o submarino nuclear.
Além do mais, o Irã é como o recheio de um hambúrguer americano. Toda a sua imensa fronteira leste tem a vizinhança de territórios com tropas dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). E a fronteira leste é com o Iraque, hoje território muito mais americano, nos sentidos militar e de atividade econômica, do que iraquiano. Desde que o levante do aiatolá Khomeini derrubou a longa e feroz ditadura do xá Reza Pahlevi, mantida e militarizada pelos americanos, Irã e Estados Unidos são adversários. Qualquer país, no sanduíche e nas circunstâncias do Irã, procuraria os meios de defender-se, mesmo os mais deploráveis.
É o que o Brasil balbucia, sejam quais forem os seus propósitos inexplícitos. E seu "aliado estratégico" repele. O que sugere termo mais condizente com os fatos de parte a parte: é estratégia em aliança de negócios.

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