segunda-feira, fevereiro 15, 2010

BRASIL S/A

Chineses no topo

CORREIO BRAZILIENSE - 15/02/10


Nos campos político e institucional, a China não tem nada a ensinar. A lista de malfeitos, passados e atuais, é grande

Ninguém aguenta mais ouvir falar na China. Como as celebridades de ocasião, o país passa por uma superexposição. Deveria se retirar do palco por um tempo, senão acaba reduzido a uma espécie de Geisy Arruda recauchutada. Mas o assunto é obrigatório. A revista Foreign Policy abriu um debate sobre o tamanho do Produto Interno Bruto (PIB) chinês em 30 anos e seu peso no mundo. A polêmica começou com um artigo do acadêmico Robert Fogel, que dividiu o Prêmio Nobel de 1993 com Douglass North por tentar explicar a evolução econômica e institucional por meio de métodos matemáticos. Fogel fez os cálculos e concluiu que, em 2040, a China vai gerar riquezas no estrondoso valor de US$ 123 trilhões.

Isso representaria três vezes mais do que o produto mundial em 2000 e levaria o país a ser responsável por 40% da economia global, já bem longe dos Estados Unidos, que minguariam para 14% e da União Europeia, com 5%. O cidadão chinês teria uma renda per capita de US$ 85 mil, mais do dobro da europeia, mas ainda abaixo da norte-americana. “É assim que o futuro será em uma geração. Isso vai acontecer mais cedo do que imaginamos”, garantiu. Neste ano, o PIB chinês pode chegar a US$ 5,5 trilhões, empurrando o Japão para o terceiro lugar no ranking. Segundo Fogel, os analistas não entendem direito o que ocorre no país. Ele cita cinco fatores que o levarão a esse salto.

1º. O enorme investimento feito em educação e capacitação profissional vai adicionar 6 pontos percentuais na taxa de crescimento anual do país, que deve fechar este ano em 9,5%. 2º. Os analistas costumam olhar só para as fábricas e o mercado financeiro, mas o setor rural, onde ainda moram 700 milhões de pessoas, é responsável por um terço da expansão atual e continuará ganhando produtividade. 3º. As estatísticas do governo subestimam o tamanho da economia, pois não capta direito o faturamento de pequenas e médias empresas, especialmente no setor de serviços. 4º. Embora a maioria pense que a política econômica é dirigida com mãos de aço pelo governo central, há um razoável nível de debate na sociedade e a maior parte das reformas é gerida localmente. 5º. A tendência consumista chinesa, reprimida por décadas, vai explodir.

O mundo está pronto?
A resposta veio nas páginas da própria FP e ficou a cargo de Nicholas Consonery, especialista em China da consultoria Eurasia Group. Segundo ele, Fogel convenientemente diminuiu a importância de sérios problemas que ameaçam o desenvolvimento chinês, confiando demais na habilidade do governo de superar os enormes desafios políticos, econômicos e ambientais. Além disso, baseia as projeções no crescimento recorde atual, que pode não se repetir. Consonery apresenta alguns argumentos. A crise global estancou o processo de liberalização na China e fortaleceu o papel do Estado no mercado, o que tende a tornar a gestão econômica mais ineficiente e prejudicar o crescimento. Como o governo está concedendo mais incentivos à exportação, as empresas vão produzir em excesso, aumentando a dependência das vendas para os Estados Unidos, Europa e Japão, com todos os riscos que isso traz.

Sem uma genuína reforma política e econômica que estimule a expressão individual e a criatividade, a inovação tecnológica ficaria prejudicada, com os talentos saindo dos bancos escolares para empresas estatais ou a burocracia. Até 2025, um quarto da população terá mais de 60 anos de idade, o que trará enormes dificuldades para o já problemático sistema previdenciário. “Mas a razão mais importante pela qual não veremos 1,4 bilhão de chineses ganhando uma renda média de US$ 85 mil por ano é que o planeta simplesmente não pode sustentar uma expansão tão rápida”, diz. Hoje, só 4% dos chineses têm automóveis, número que poderia ser multiplicado por 20, com todas as consequências ambientais. O país deve enfrentar um deficit de 25% no fornecimento de água em 2030 — Pequim já sofre com a escassez. “O mundo está pronto para a China que Fogel descreve? A China está?”, perguntou Consonery.

Economia não é tudo
Num artigo publicado na revista The New York Review of Books, o historiador britânico Tony Judt afirma que, nos últimos 30 anos, as pessoas se acostumaram a pensar de forma apenas econômica ao avaliar políticas públicas. Em vez de se perguntarem se a medida proposta é boa ou má, querem saber se ela é eficiente e aumenta o PIB. Essa constatação cabe perfeitamente no caso da China. Em todo lugar só se quer saber do seu desempenho econômico. Pouco importa saber hoje se eles produzirão US$ 123 trilhões em 2040. Se ocorrer mesmo, e daí? Economia não é tudo. Civilização implica liberdades civis, tolerância, respeito à diferença, igualdade de condições, acesso à cultura e a um banheiro limpo.

Nos campos político e institucional, a China não tem nada a ensinar. A lista de malfeitos, passados e atuais, é grande. Desrespeita direitos humanos, do consumidor e o meio ambiente, proíbe a plena liberdade de expressão, a Justiça não se rege pelo devido processo legal e o regime político desconhece os princípios básicos da democracia. Tiraniza seu próprio povo. No artigo, Fogel afirma que uma economia dominada pela China pode soar estranho, mas representaria apenas uma volta ao passado, pois o país foi o mais rico em 18 dos últimos 20 séculos. Fiquem eles com o poder econômico. Nós nos contentamos com os valores ocidentais.

Ricardo Allan é repórter de economia

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