domingo, janeiro 17, 2010

MÍRIAM LEITÃO

Amargo começo

O GLOBO - 17/01/10


Foram apenas duas semanas, e o ano já parece velho. Enchentes, deslizamentos e mortes no Rio, em Angra, em São Luiz do Paraitinga alertaram para os riscos que a população urbana corre. Crise institucional na Argentina. Crise econômica e racionamento na Venezuela. Catástrofe no Haiti, país mais pobre das Américas, em dimensões não vistas em 200 anos.

O ano de 2010, que começou cercado de esperanças na área econômica, pesou de repente. A primeira semana foi dolorosamente ocupada pela morte e destruição das tempestades em várias áreas do Brasil. A segunda semana excedeu tudo o que se pudesse imaginar na pior ficção de terror.

O mundo ainda não sabe como sair da tragédia do Haiti, que espanta a todos.

“Desolação e impotência”, diz um jornalista dominicano que tem enviado informações por twitter de lá desde o primeiro momento, com fotos e palavras. Os relatos dos primeiros jornalistas brasileiros que conseguiram chegar lá são aterradores.

Nada parece pior, e mesmo assim se teme pelo pior: uma revolta desesperada pode eclodir a qualquer momento no país que não tem como enterrar seus mortos, resgatar os soterrados, alimentar e dar água aos feridos. Um país que não tem estrutura sequer para receber ajuda.

Um sinal dos tempos extremos foi dado aqui neste jornal. A manchete de quintafeira era “Desespero”. A de sexta-feira era: “Horror, fome e revolta.” A situação é tão limite que o mundo não tem alternativa a não ser superar todos os falsos obstáculos que sempre foram criados entre os países pela lógica mesquinha do cotidiano.

Estados Unidos recebendo permissão do governo de Cuba para usar seu território é o que não se vê há 50 anos. A mobilização pública e privada começa a se formar em dimensão robusta.

Mesmo assim, a luz no fim do túnel tardará para o Haiti. “Hoje, somos todos haitianos”, escreveu em seu twitter a jornalista Kristie lu Stout, da CNN de Hong Kong, e imediatamente o texto foi retuitado no Brasil.

O sofrimento dos haitianos terá que unir os países, eliminar distâncias, superar inimizades e mobilizar organizações e pessoas, porque seu abandono seria o fim da esperança. Se o Haiti não nos comover, nada mais comoverá o mundo.

Além disso, há uma lição prática a se tirar tanto dos desastres do Brasil do começo do ano como da tragédia do Haiti. O que o mundo tem visto com muita frequência é que não está preparado para qualquer evento extremo. Até o país mais rico do mundo pareceu extraordinariamente despreparado para o Katrina, quando o furacão vitimou Nova Orleans.

O que os cientistas estão dizendo é que eventos extremos — inundações, secas, furacões, tempestades violentas, deslizamentos — vão acontecer no mundo com mais frequência e mais rigor.

Terremotos não são fenômenos da mesma natureza, como se sabe. São movimentos de placas tectônicas, para os quais, em alguns países mais ricos, como o Japão, e até a uma certa intensidade, conseguese preparar o país. Impossível é se preparar para algo da magnitude do que houve no Haiti. Ele foi assim tão letal pela pobreza do país.

No Haiti, o que aconteceu foi o encontro de duas tragédias: um violento terremoto num país de privação absoluta. O que fica claro para a maioria das pessoas, só agora, é que o país tinha sido desamparado demais, por tempo demais.

Só recentemente as Forças de Paz da ONU chegaram. O Brasil pode dizer que tem feito seu trabalho de comando das tropas internacionais com extrema diligência, tentando levar o mínimo a um país sem nada. E tinha feito tão bom trabalho que virou uma liderança no país sem nenhuma baixa em combate. As poucas perdas de vida antes do terremoto haviam sido atingidas por acidentes. Agora, o Brasil enlutado vê a volta de militares em caixões e, consternado, chora a morte de Zilda Arns, ícone da solidariedade e da vitória sobre a mortalidade infantil. O fato de que ela estava lá mostra que o Brasil sempre se importou com a tragédia haitiana.

O mundo certamente subestimou o tamanho do desamparo do Haiti.

Mas o alerta dos cientistas não tem sido ouvido.

Fenômenos naturais, mas agravados pelas mudanças climáticas, atingirão mais e mais populações. É preciso ter tecnologia, logística, treinamento para saber como evacuar áreas, como abrigar desabrigados, como receber expatriados. É preciso ter forças de paz cada vez mais treinadas, num mundo que perde ainda tanto tempo, recursos e vidas com os esforços de guerra.

O ano será de boas notícias econômicas que vão apagar um pouco a impressão desse chocante começo. A economia está retomando o nível de atividade no Brasil, e as notícias de aumento de investimento, recorde de vendas, crescimento da arrecadação vão ocupar cada vez mais as páginas da economia.

Há preocupações com sinais de desequilíbrios em alguns países e em certos setores que podem trazer riscos de bolhas e sustos. O debate político-eleitoral vai criar suas polarizações e simplificações, principalmente a partir do segundo trimestre.

Depois, virá a Copa do Mundo com sua torcida. Será um ano cheio de emoções.

Que desse impacto inicial do ano fique o melhor: a capacidade de multiplicar a solidariedade como nos ensinou Zilda Arns, a sabedoria de começar a preparar espaços urbanos para os eventos naturais mais rigorosos que certamente virão, um debate político que não se amesquinhe e procure soluções para os problemas do Brasil. O ano mal começou mas já nos indicou, com seus fatos extremos, o que é essencial na vida.

Saio de férias e vocês ficarão com Regina Alvarez, que já ocupou este espaço.

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