sábado, janeiro 23, 2010

MAÍLSON DA NÓBREGA

REVISTA VEJA
Maílson da Nóbrega

Banco Central antidemocrático

"Como Lula provou, politicamente esperto é o cara capaz
de abandonar velhas visões e atribuir ao BC a missão
de manter a estabilidade, fonte básica de popularidade"

A autonomia operacional dos bancos centrais é a norma nos países desenvolvidos, mas é rejeitada em países de instituições fracas, baixo conhecimento econômico e rala percepção das vantagens do capitalismo. A Argentina deu recentemente um bom exemplo dessa última categoria.

De fato, sem prévia autorização do Senado (como manda a lei), a presidente Cristina Kirchner demitiu o presidente do Banco Central, Martín Redrado, porque ele se recusou a cumprir sua ordem de transferir 6,5 bilhões de dólares das reservas internacionais para um fundo de resgate da dívida externa. A confiança no país foi abalada.

No Brasil, considerou-se absurdo que alguém sem mandato se insubordinasse contra uma presidente eleita e, por isso, com poder legítimo para tomar decisões. Falou-se que criticar Cristina seria coisa de "mercadistas alucinados" que querem o BC como um quarto poder. Resistir à demissão seria atropelar a democracia.

Conceitos esquisitos, esses. Por eles, um chefe de governo, desde que eleito democraticamente, pode tomar qualquer decisão. Na verdade, a democracia surgiu, entre outros motivos, da limitação de poderes dos governantes. Presidentes não recebem cheque em branco do eleitorado.

A autonomia operacional dos bancos centrais é uma inovação institucional do século XX. Começou com o Federal Reserve americano, na lei de sua criação (1913). Na Europa e no Japão, a autonomia também existia, mas foi confirmada em lei apenas nos anos 1990.

A ideia é evitar que governantes despreparados usem o BC para expandir gastos com objetivos políticos. Há abundante evidência de que as correspondentes emissões de moeda produzem inflação e nefastas consequências sociais. O Brasil que o diga.

Antes, no padrão-ouro, a oferta de moeda era em função do estoque do metal. Bancos privados eram autorizados a emitir moeda, desde que observada a regra. Os governantes não tinham poder para financiar gastos de forma inflacionária.

Esse arranjo limitava o crescimento econômico. Nas crises, as saídas de ouro diminuíam o meio circulante. Havia contração violenta da economia, da renda e do emprego. O poder de barganha dos sindicatos de trabalhadores – que dificultava a queda dos salários nominais – foi uma complicação adicional. Na grande crise dos anos 1930, sofreu mais quem mais demorou a abandonar o padrão-ouro.

Com o fim do padrão-ouro, o estado assumiu a exclusividade das emissões. Sem lastro, as notas eram simples papel pintado. Para evitar abusos e inflação, criou-se uma regra para fornecer a mesma credibilidade do velho regime: a autonomia operacional do BC, com mandato para a diretoria e proibição de financiar diretamente o Tesouro.

Cabe ao BC zelar pela estabilidade da moeda, precondição para o desenvolvimento. Ele não pode receber ordens para baixar juros ou gastar reservas internacionais com o objetivo de expandir irresponsavelmente a economia. A lei de autonomia o obriga a prestar contas ao Congresso, que pode demitir seus diretores em caso de falta grave.

O BC é, pois, uma instituição deliberadamente antidemocrática. Sem mandato eletivo, seus diretores tomam decisões que repercutem no crédito, na atividade econômica, no emprego e na renda. Ocorre que esse status lhe é concedido por representantes da sociedade, eleitos pelo povo. Ou seriam idiotas os parlamentares que assim o fizeram no mundo rico e em muitos países emergentes?

Na prática, o BC brasileiro é autônomo. É uma consequência natural das mudanças mentais da maioria da sociedade. Como Lula provou, politicamente esperto é o cara capaz de abandonar velhas visões e atribuir ao BC a missão de manter a estabilidade, fonte básica de popularidade. Não é neoliberal nem afronta a democracia.

Melhor seria uma lei específica, mas o apoio é escasso. A julgar pelas manifestações em defesa de Cristina, ainda se pensa em um BC "desenvolvimentista", que receba ordens para baixar juros.

Formados de seres humanos, os bancos centrais erram. Por isso, precisam ser transparentes e previsíveis, e prestar contas. Devem ser monitorados para evitar erros ou sua repetição. É melhor assim do que ter um BC "democrático", que cede a caprichos de políticos, empresários e comentaristas.

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