quarta-feira, janeiro 06, 2010

JOSÉ RENATO NALINI

Reflexos de um lustro

O ESTADO DE SÃO PAULO - 06/01/10


A mais recente das reformas constitucionais do Judiciário completa cinco anos. A Emenda Constitucional (EC) 45 entrou em vigor em 31/12/2004 e sua tônica foi acelerar a prestação jurisdicional. Não que o constituinte originário já não tivesse mandado o recado à Justiça em 1988. Mas, agora, a ênfase na presteza torna-se mais evidente. Ou o Judiciário funciona ou se apressa o ritmo de seu declínio, para prestígio de alternativas de resolução de conflitos.
O constituinte derivado chega a criar um novo direito fundamental, em acréscimo à já alentada enunciação do artigo 5º da Carta: a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Nada obstante a dificuldade em precisar o que seja a "razoável duração" da demanda, a parte final é eloquente: há de se garantir celeridade no trâmite. Ao lado dessa inclusão -, a rigor, desnecessária, pois a eficiência de um serviço público já fora prevista como princípio fundamental da administração no artigo 37 -, outros preceitos foram postos no pacto republicano para mostrar que a nacionalidade não vai tolerar a disfunção da Justiça. Criou-se o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o temido órgão de controle externo, cuja atuação repercutiu na mídia e desta mereceu observação atenta. Assim, o combate à prática do nepotismo, os excessos remuneratórios, a injustificável paralisação de processos criminais, a caótica situação fundiária em algumas unidades da Federação.
A produtividade do juiz passou a representar critério objetivo de aferição de seu merecimento para fins de promoção na carreira. Vedou-se a promoção do juiz que injustificadamente retiver autos em seu poder além do prazo legal e a impossibilidade de devolvê-los ao cartório sem o devido despacho ou decisão. Embora a rigor fosse desnecessário, estabeleceu-se que a atividade jurisdicional será ininterrupta e proibiu-se o período de férias coletivas nos juízos e tribunais. O preceito, que já poderia ser extraído da versão do pacto em 1988, foi renovado: nos dias em que não houver expediente forense normal, juízes em plantão permanente deverão estar à disposição da cidadania.
A distribuição de processos tem de ser imediata, em todos os graus de jurisdição. Dir-se-á irrelevante o dispositivo: os autos continuarão a aguardar a boa vontade e a capacidade de trabalho do julgador. Mas a diferença é significativa: a partir da destinação do processo, a parte saberá a quem tributar a demora excessiva e poderá provocar o responsável. Já não poderá receber como resposta que seu recurso "aguarda distribuição", o que era a regra antes de 2005.
Foi com base nessa nova perspectiva que o CNJ adotou a chamada Meta 2, cujo intuito foi ultimar o julgamento de todos os processos distribuídos até à entrada em vigor da reforma. Se seu cumprimento foi impossível, diante da complexidade do Judiciário, integrado de várias Justiças, o recado serviu ao menos para incomodar os que mantêm ritmo incompatível com o novo desenho do serviço estatal encarregado de resolver conflitos.
O significado maior da EC 45/2004 foi evidenciar que o Poder Judiciário no Brasil, teoricamente uno, de acordo com a doutrina, precisa atuar como serviço público eficiente e submeter-se a planejamento. A sofisticação de um modelo preservador de duas Justiças comuns - a federal e a estadual - e de três Justiças especiais - Trabalhista, Militar e Eleitoral - originou a conhecida figura dos arquipélagos com mais de uma centena de ilhas autônomas. Até mesmo dentro do mesmo ramo o Judiciário manteve e consolidou distorções - setores bem providos de servidores e de infraestrutura e outros afogados em excesso de trabalho e de burocracia.
Apenas um órgão corajoso de planejamento poderia iniciar a lenta, mas irreversível correção de rumos. Isso coube ao CNJ, cuja vocação é planejar o Judiciário do futuro, mais do que servir como supercorregedoria. Muito embora a mera existência de um colegiado destinatário de queixas e reclamações tenha servido para estimular o funcionamento dos órgãos correcionais acometidos de letargia.
As críticas começam por invocar o sepultamento da Federação. Mas isso não é novidade. O federalismo brasileiro sempre foi sui generis. Nunca houve aqui a soberania das províncias que gerou o modelo confederativo norte-americano. O poder no Brasil é centralizado. A tentativa paulista de liderar um movimento constitucionalista que respeitasse princípios da República não custou só vidas humanas. Representou permanente desconsideração por São Paulo, que ainda reside nas alusões a "paulistérios" e ao não se prestigiarem gente e teses bandeirantes nos altos comandos republicanos. Suficiente mencionar a deplorável deficiência representativa no Parlamento, que traduz a vontade do povo, onde a voz paulista é sufocada. Se o Poder Judiciário é uno, como ensina de forma consensual a melhor doutrina, ele precisa de uma diretriz resultante de um planejamento consequente. A reforma do Judiciário pretendeu mais do que efetivamente realizou. O ponto nevrálgico está na urgente reformulação da sistemática de recrutamento dos novos quadros que servirão à Justiça do amanhã. O sistema de méritos precisa ser aperfeiçoado e as diretrizes estabelecidas pelo CNJ e pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) devem ser observadas e implementadas.
Até hoje, com raras e mal compreendidas exceções, o concurso público privilegiou a capacidade de memorização e não se ateve aos atributos que realmente interessam: caráter, vocação, capacidade de trabalho, espírito público, compreensão da realidade brasileira, humildade e talento para enfrentar desafios. Fora diferente a seleção e o próprio Judiciário teria liderado sua atualização contínua, de forma a evitar traumatismos decorrentes de sua incapacidade de diálogo. Agora, só lhe resta cumprir o que a sociedade brasileira quer de sua Justiça, de forma clara sinalizada na Emenda 45/2004.

José Renato Nalini, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, é presidente da Academia Paulista de Letras

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