terça-feira, janeiro 19, 2010

FERNANDO DE BARROS E SILVA

No coração das trevas

FOLHA DE SÃO PAULO - 19/01/10

SÃO PAULO - Centenas de homens disputam sacos de comida entre os escombros; a polícia, com nove guardas, tenta contê-los, em vão; um dos saqueadores cai no chão, atingido por um tiro na nuca, disparado por um policial; enquanto agoniza, outro homem lhe toma a carteira do bolso. A cena em Porto Príncipe foi registrada e relatada ontem na Folha pelo repórter-fotográfico Caio Guatelli.
O jornal "O Globo" reproduziu outras duas imagens de um linchamento na capital do Haiti. Na primeira, um homem nu e com os pés amarrados é espancado a pauladas, cena observada por uma criança; na segunda foto, vemos apenas suas pernas, enquanto o resto do corpo, coberto por dejetos, arde ainda vivo sob a fogueira improvisada na rua.
Estamos no estado de natureza hobbesiano -da guerra de todos contra todos. O que mais estarrece no Haiti é a falência total do Estado, a ausência de qualquer serviço público para socorrer as vítimas: não há bombeiros, não há defesa civil, não há atendimento médico -não existe governo.
Sim, seria preciso construir um Estado no Haiti. Mas nas últimas décadas o Estado foi o grande vilão da comunidade internacional, visto como foco de corrupção e de ineficiência, um problema, nunca uma eventual solução. Foi o que disse o cientista político haitiano Robert Fatton, professor nos EUA, em entrevista ontem a Claudia Antunes.
Bilhões de dólares transferidos ao Haiti nos anos 90 acabaram enredados e consumidos pela estrutura de ONGs, soldados e empresas americanas que atuavam no país. A sociedade civil planetária engoliu o dinheiro.
Não se sabe o que será do Haiti quando o miserê sair do noticiário.
Mais uma vez, é grande o risco de que a indústria da ajuda humanitária sirva mais à rede de ativistas e organizações internacionais do que à reconstrução da infraestrutura e à construção de serviços públicos no país. Já vimos o filme. É atroz, monótono e não tem final feliz.

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