quarta-feira, janeiro 20, 2010

ELIO GASPARI

Temporão precisa dedetizar o cartão SUS

FOLHA DE SÃO PAULO - 20/01/10


Em dez anos, o Ministério da Saúde torrou R$ 400 milhões aplicando má gestão a uma boa ideia


ENTRE O MUNDO encantado da propaganda e o abismo dos fracassos, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, tem um abacaxi de R$ 590 milhões sobre a mesa. Ele se chama Cartão Nacional de Saúde, ou cartão SUS. O ministro pode descascá-lo ou comê-lo inteiro, como preferir.
Pela propaganda do seu ministério, o cartão "é um instrumento que possibilita a vinculação dos procedimentos executados no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) ao usuário, ao profissional que os realizou e também à unidade de saúde onde foram realizados". "É", coisa nenhuma. Talvez fosse, seria ou será. Por enquanto, o cartão SUS é apenas um desastre que merece ser estudado por pesquisadores da má administração pública e da esperteza dos fornecedores de equipamentos de informática.
A ideia de um cartão que armazenasse todas as informações médicas de um cidadão surgiu no tucanato. A ideia era boa, mas estava condenada a percorrer os caminhos onde estão os intere$$es das empresas fornecedoras de serviços e equipamentos de informática à Viúva. Ao verbo da promessa seguiu-se uma verba para fornecedores de equipamentos. Foram R$ 89,2 milhões, arrematados por duas empresas, numa licitação acusada de direcionamento. Pelo plano, 10 mil máquinas iriam para 44 cidades de um projeto-piloto e a novidade racionalizadora começaria a funcionar em 2001. Passados dez anos, a Viúva gastou R$ 327 milhões e a Unesco botou R$ 74,3 milhões na iniciativa. Total: R$ 401 milhões, desprezando-se os R$ 48,1 milhões guardados no orçamento deste ano.
O repórter Dimmi Amora mostrou o que aconteceu com esse ervanário. Uma inspeção feita em 7 das 44 cidades do projeto-piloto revelou que, das 1.937 máquinas distribuídas, só 7 funcionavam. Prensaram-se 1,1 milhão de cartões, mas pelo menos 346 mil estão engavetados.
Triunfal, o Ministério da Saúde informa que o doutor Temporão "ordenou, em 2008, a reformulação do cartão, principalmente na adaptação tecnológica". Talvez o ministro fizesse melhor chamando a polícia, sem reformular coisa alguma, muito menos na "adaptação tecnológica" de um projeto que clama pela ajuda humanitária da medicina orçamentária. No final de 2005, quando o plano já tinha naufragado, o Ministério da Saúde estendeu-o para as cidades de Fortaleza e Aracaju com um contrato de R$ 11,8 milhões, sem licitação.
Depois de se gastar meio bilhão de reais numa coisa que não funciona, o melhor que se tem a fazer é investigar o que aconteceu, se possível com a ajuda da Polícia Federal. É possível que os equipamentos e os programas vendidos em Brasília só funcionem na cabeça de hierarcas e fornecedores. Também é possível que a máquina burocrática tenha repelido um mecanismo que aprimora os controles e a transparência. Isso pode ter acontecido por puro desinteresse, mas também pelo interesse de evitar que os gastos sejam controlados. O mais provável é que os dez anos de fracassos sejam uma mistura de todos esses fatores.
Temporão pode ir à luta, expondo o desastre à luz do sol. Pode também anunciar uma reformulação, pretendendo reinventar o problema. Nesse caso, o mais provável é que daqui a alguns anos Dimmi Amora seja obrigado a contar que a conta chegou a R$ 1 bilhão. Cartão SUS na mão da patuleia, nem pensar.

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