quinta-feira, janeiro 14, 2010

ALOÍSIO DE TOLEDO CÉSAR

Os trapalhões em forma

O Estado de S. Paulo - 14/01/2010


Atribui-se ao presidente Lula o gesto de ter assinado sem ler as muitas páginas do famigerado decreto envolvendo direitos humanos, o qual serve antes de tudo para tornar exposta a falta de visão e de inteligência humanas.

Em situações difíceis enfrentadas por seu governo, ao longo de sete anos, ele sempre saiu de lado, naquele estilo "não sabia de nada". Foi assim quando eclodiu dentro de seu gabinete o escândalo do mensalão e ele não sabia que José Dirceu, a alguns metros dele, incorporava a reputação de estar repassando dinheiro público a aliados, para que aprovassem leis no Congresso Nacional. Não sabia também que os seus companheiros íntimos do partido estavam envolvidos no escândalo até a raiz do último fio de cabelo.

Agora, mais uma vez, os jornais noticiam que Lula continua a sair de lado, ou seja, para não ficar exposto ao dilema de ter lido ou não ter lido o famigerado decreto, determinaria reeditá-lo e deixar clara a ausência de aval do governo. No novo texto o decreto diria apenas que o presidente divulga a conclusão da Conferência de Direitos Humanos, ou seja, que o presidente não está comprometido com isso.

Esse comportamento é bem próprio do estilo Lula de governar, ou seja, o estilo "tô nem aí", sempre voltado para blindá-lo dos desgastes resultantes das besteiras praticadas por seu grupo íntimo. Parece claro que Lula não tem nada que ver com o conteúdo do decreto, mas, infelizmente, o fato de desconhecer suas disposições e de assinar em branco é profundamente comprometedor.

Realmente, o festival de estupidez jurídica enfeixado no decreto é de assustar e poderia servir de hino ao não-saber jurídico. Não parece admissível que Lula, após sete anos de governo, não tenha encontrado em seu grupo íntimo alguém com a necessária lucidez para enxergar essas coisas e impedir que se tornem públicas. Ao contrário, tem-se a impressão de que dentro de seu gabinete, isto é, junto ao seu grupo íntimo, há pessoas que pretendem dinamitar o ano eleitoral, com propósitos ainda não muito claros.

Para se ter uma ideia da insanidade evidente no referido decreto basta observar as restrições que procura impor aos símbolos religiosos. Levada à risca essa imposição, chegaríamos ao absurdo de ter de destruir uma das maiores maravilhas da humanidade, o Cristo Redentor do Rio de Janeiro, assim eleito pelas pessoas de todo o mundo.

A imagem do Cristo Redentor representa a expressão de fé de milhões de seres humanos, mas pelo decreto seria intolerável, porque é um símbolo religioso. Da mesma forma, cada vez que um jogador de futebol fizer um gol e repetir o gesto do sinal da cruz, estará também violentando o decreto.

Isso para não falar nos nomes das cidades. O conhecido jurista Ives Gandra Martins bem observou em entrevista à televisão que as cidades brasileiras com nomes de santos, como São Paulo, São Vicente e tantas outras, terão de mudar de nome para se enquadrarem ao decreto.

É evidente que esses argumentos são usados tão somente para exprimir o absurdo da disposição legal, porque não se poderia mesmo admitir que fossem banidos, expurgados, amaldiçoados símbolos religiosos que são há milênios preferências eleitas de determinadas religiões, como a cruz para os cristãos, a imagem de Buda para os budistas e a estrela de Davi para os judeus.

A investida contra os símbolos religiosos não é coisa nova. É antes uma obsessão tola e juvenil de cristãos do tipo "xiita", ou seja, radicais que se dizem incomodados com as imagens de Cristo expostas em todos os cantos, não só no Brasil como no mundo todo.

Incrivelmente, o decreto do presidente Lula cedeu a essa vocação religiosa radical por pressão dos grupos contrários aos símbolos religiosos e com isso ofende as preferências de milhões de católicos, que são maioria no Brasil. Enfim, agrada aos radicais, mas ofende os católicos.

Outro lado grotesco do decreto é aquele que parece escrito por José Rainha e João Pedro Stédile, os dois políticos que há anos, impunemente, fazem uso do despreparo intelectual dos sem-terra e os transformam em massa de manobra. O decreto procura retirar do Judiciário o poder privativo de decidir sobre as questões envolvendo invasões de terras.

Desde Montesquieu, o Poder que governa não julga nem faz as leis; o Poder que faz as leis não governa e não julga; e o Poder que julga não governa nem faz as leis. É assim no mundo civilizado, sobretudo no mundo democrático.

Não é possível que se procure retirar do Judiciário o poder privativo de decidir tais questões. Qualquer violação a esse Poder estará em afronta aberta às cláusulas pétreas da Constituição federal, ou seja, são disposições afetadas pelo vício de origem de nulidade.

É inacreditável que as pessoas que redigiram ou leram o decreto não se tenham dado conta de que a justiça não pode ser privatizada. Somente nos regimes de força, extremistas e totalitários a justiça de faz nos gabinetes ou é delegada a grupos, como insinua pretender o decreto.

Num coroamento de falta de inteligência, e de que realmente se pretende jogar gasolina na fogueira, reabre-se o confronto entre torturadores durante o regime militar e os integrantes de grupos terroristas que atiraram bombas e, de metralhadora nas mãos, acharam que iriam alcançar a democracia (entre eles, a ministra Dilma Rousseff, com sua reputação de ex-guerrilheira).

De todas essas trapalhadas fica a impressão de que algumas pessoas do grupo íntimo do presidente Lula estão agindo com propósitos ideológicos e pretendem agarrar-se ao último ano de governo para criar uma situação capaz de garantir a continuidade. Difícil pensar que seja só falta de inteligência.

Aloísio de Toledo César, desembargador aposentado, é advogado e jornalista.

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