quarta-feira, janeiro 20, 2010

ALEXANDRE SCHWARTSMAN

O sonho de Odisseu


FOLHA DE SÃO PAULO - 20/01/10


BCs independentes foram criados para evitar que um bem público fosse ameaçado por conveniências políticas

A CRISE recente na Argentina serviu de pretexto para a abertura da temporada de disparates de 2010. É bem verdade que a criação de bobagens jamais respeitou o calendário gregoriano, mas desta vez seu escopo foi substantivamente alargado: deixamos o domínio da economia para adentrarmos, com tração nas quatro, no pantanoso terreno da democracia.
Recapitulando, o governo argentino ordenou ao banco central (BCRA) que transferisse cerca de US$ 6 bilhões de suas reservas para um fundo destinado ao pagamento da dívida. O presidente do BCRA, Martín Redrado, recusou-se, baseado na legislação vigente, que assegura que as reservas só podem ser utilizadas para pagamento de obrigações do próprio BCRA (aliás, esse argumento -de que os dólares do BCRA pertencem a ele, e não ao Tesouro argentino- é o que impede credores de sequestrarem as reservas para pagamento das dívidas em default).
Devido à recusa de Redrado, o governo o demitiu, embora a lei argentina estabeleça que o presidente do BCRA só possa ser demitido pelo Congresso. Baseado nisso Redrado conseguiu, num mandado de segurança, ordem que o mantém no cargo, deixando o BCRA na curiosa situação de possuir dois presidentes (se cada um pudesse ficar com a responsabilidade por só metade da inflação, até que não seria tão ruim). Esses são os fatos. Passemos às tolices.
Há quem reconheça que as regras existem e foram descumpridas pelo governo argentino, mas argumenta que regras "ilegítimas" não devem ser observadas. Simultaneamente, porém, assegura que "insubordinação se pune", posição esquizofrênica, pois prega a obediência a uma decisão que desobedece à lei.
Leis existem, entre outras coisas, para limitar o poder do soberano. Não é difícil imaginar o que cada governante (ou cada indivíduo) faria se os limites da lei pudessem ser violados com base no que cada um considera "legítimo". Duvido, por exemplo, que o autor do argumento tenha apoiado a decisão do governo Bush de manter prisioneiros em Guantánamo, ainda que os formuladores da "guerra ao terrorismo" achassem seus motivos e, logo, suas ações perfeitamente "legítimas", apesar de sabidamente ilegais. Acredito também que não endosse a ação dos que acham "legítimo" assassinar médicos que praticam o aborto nos EUA.
Outros clamam que a medida não violaria a independência do BC porque esta diria respeito somente à política monetária, quando o caso se refere à política fiscal. Não veem (ou fingem não ver) que essa linha de argumentação limitaria qualquer ação do BCRA que tenha efeitos fiscais. Uma elevação de taxa de juros, por exemplo, poderia ser questionada com base na mesma lógica.
Defendem ainda que o princípio da independência plena dos bancos centrais seria "antidemocrático", embora todas as grandes democracias deste lado da galáxia adotem nada menos que a independência plena dos bancos centrais (e, não, o Federal Reserve não tem uma "independência razoável" como o BC brasileiro: seus diretores têm mandatos fixos e escolhem sua própria meta de inflação).
Esse arranjo não surgiu por acaso. Da mesma forma que a lei limita o poder do soberano, BCs independentes foram criados exatamente para evitar que um bem público, a estabilidade de preços, pudesse ser ameaçado pelas conveniências políticas do príncipe. Democracias descobriram que certas amarras autoimpostas são cruciais para prevenir que o canto das sereias produza resultados que lhes causem danos às vezes irreparáveis, mas parece haver quem ainda não tenha amadurecido o suficiente para compreender isso.

Alexandre Schwartsman, 46, é economista-chefe do Grupo Santander Brasil, doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.

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