quarta-feira, janeiro 06, 2010

ALEXANDRE SCHWARTSMAN

Os cadarços do Barão

Folha de S. Paulo - 06/01/2010


Se não for possível cumprir a meta fiscal em um ano, que se diga isso com todas as letras para a sociedade

UMA EMPRESA precisa atingir sua meta de lucro para o ano, mas acredita que não vai conseguir. Seu proprietário, porém, tem um banco e põe em prática um plano arrojado. A empresa toma uma dívida de R$ 100 milhões e deposita o dinheiro no banco, recebendo pelo depósito o mesmo que paga pela dívida. O banco, por sua vez, com os novos recursos compra da empresa o direito de receber um fluxo de pagamentos há muito disputado, na prática antecipando uma receita duvidosa para o período corrente, o que permite à empresa bater a meta. Todos saem felizes, mas se essa engenharia financeira evocou para o raro leitor a imagem do Barão de Munchausen se levantando do chão pelos próprios cadarços, bem, saiba que não está sozinho.
O exemplo não é imaginário. Use "bilhões" em vez de "milhões", "Tesouro Nacional" no lugar de "empresa", e "BNDES" no lugar de "banco", e terá uma descrição sucinta do ocorrido na última semana de 2009, quando o BNDES comprou do Tesouro Nacional R$ 5,2 bilhões de dividendos que este teria a receber desde 1989 (!). Ao que parece, não bastou deduzir da meta fiscal os investimentos do PAC, o Fundo Soberano, nem o quadrado da distância em cúbitos entre o Ministério da Fazenda e o do Planejamento. No final do ano foram as manobras contábeis que salvaram a meta, mesmo após sua redução expressiva.
Isso não significa que o desempenho fiscal nos levará à ruína, mas esse episódio serve para induzir à reflexão acerca de alguns tópicos importantes de política fiscal.
Em primeiro lugar, a meta fiscal tem um papel a desempenhar no que respeita à formação de expectativas dos agentes econômicos, isto é, o valor numérico da meta deve significar alguma coisa. Dizer que a meta é de "x'% do PIB, mas apenas se não chover na Quarta-Feira de Cinzas de um ano bissexto terminado em "8", pode ajudar a escamotear eventuais desvios, mas não colabora muito para a transparência da política. A meta é um compromisso do governo com a sociedade. Caso não seja possível cumpri-la em um ano, que se diga isso com todas as letras, explicite-se o porquê, e se tracem os planos para corrigir os rumos num horizonte razoável, ou seja, tratemos o distinto público com respeito.
Em segundo lugar, há que se pensar na validade do conceito de dívida líquida, isto é, se devemos mesmo descontar dos passivos do setor público ativos como reservas internacionais ou créditos ao BNDES. Sempre defendi esse conceito por acreditar que o excesso de reservas sobre dívida em moeda estrangeira protege o país de choques externos. Por outro lado, não parece haver qualquer tipo de proteção associado à criação de ativos denominados em reais, mas a simples possibilidade de uso de instrumentos fiscais fora das instâncias normais dessa política.
E que não se venha afirmar que tudo foi em nome de "políticas fiscais anticíclicas". A política fiscal no Brasil não é, e nunca foi, anticíclica, e veremos isso quando o superavit primário de 2010 ficar aquém dos valores registrados até 2008, apesar da recuperação da arrecadação. De fato, segundo dados de artigo recente do secretário de Política Econômica, o aumento do investimento federal em 2009 foi de mero 0,2% do PIB, contra 0,38% do PIB de gastos com pessoal (descontado o Imposto de Renda) e 0,45% dos gastos previdenciários, os dois últimos implicando redução permanente do saldo primário, estimulando a demanda interna mesmo quando o país cresce. É política anticíclica?
Isso, leitor, nem o Barão de Munchausen explica.

ALEXANDRE SCHWARTSMAN, 46, é economista-chefe do Grupo Santander Brasil, doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.

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