terça-feira, dezembro 22, 2009

RUBENS BARBOSA

Ser ou não ser


O Estado de S. Paulo - 22/12/2009
A Argentina vive uma crise existencial pela dificuldade de encontrar uma saída para os problemas políticos e econômicos domésticos e para encontrar uma atitude adequada nas relações com o Brasil, vizinho e principal parceiro. Isso é agravado pela percepção de perda de espaço, resultado da estabilidade da economia e da projeção externa brasileiras.

Um dado sintetiza bem o drama psicológico vivido pelo governo e pela sociedade argentinos. Até a década de 60, o PIB da Argentina era maior que o do Brasil. Em 2009 o PIB de São Paulo é uma vez e meia o daquele país. Só o investimento da Petrobrás para o período 2009-2013 representa mais de 55% do PIB argentino.

Pesquisas de opinião na Argentina registram a preocupação com o caráter que as relações bilaterais estão adquirindo e mostram que não há consenso entre as diferentes visões sobre o futuro do país. As lideranças políticas e econômicas estão obcecadas pela percepção de que a Argentina tem de se defender do Brasil pelas assimetrias do tamanho, da participação no mercado, de padrões de especialização e regulatórias. As explicações para o crescimento diferenciado entre as duas economias criam bodes expiatórios como o BNDES (não existe banco de fomento na Argentina), que gera um déficit estrutural, e o dinamismo do comércio exterior brasileiro, que gera desequilíbrio da balança comercial. Essas desculpas escondem convenientemente as mazelas políticas, os desencontros na política econômica e a falta de uma visão de futuro das elites políticas e empresariais argentinas.

Fui convidado a participar em Buenos Aires de encontro para discutir, de maneira franca, as preocupações com o futuro do país e sobre como a Argentina deveria se posicionar em face das novas realidades bilaterais e também no contexto da integração regional. Hesitei em participar porque, depois de tantos anos acompanhando as relações bilaterais, formei minhas próprias convicções, nem sempre positivas, sobre as possibilidades existentes para a Argentina com o avanço econômico do Brasil e seu papel mais relevante no cenário internacional.

Há, atualmente, no Brasil percepções distintas entre governo e setor privado em relação à Argentina e minhas observações procuraram refletir as visões prevalecentes no meio empresarial.

As condições políticas, econômico-financeiras e comerciais do relacionamento mudaram pelos avanços registrados no Brasil e pelo retrocesso ocorrido na Argentina. Embora o Brasil tenha continuado a ser um sócio muito importante, a agenda argentina se tornou essencialmente defensiva. Aí talvez resida hoje o principal problema do ponto de vista psicológico e das percepções.

Interessa ao Brasil uma Argentina próspera e bem-sucedida e, por isso, encontrando um ponto de equilíbrio em sua política interna, ela deveria aproveitar ao máximo o crescimento econômico brasileiro. No entanto, o problema psicológico argentino, agravado pela dificuldade de escolher o caminho que o país deveria seguir, impede a adoção de uma atitude mais ofensiva para aproveitar as oportunidades que se abrem pela nova inserção global do Brasil.

O governo e o setor privado argentinos deveriam deixar de se preocupar com o sucesso do Brasil e começar a aproveitar o crescimento do mercado vizinho, como alguns já estão fazendo. Para tanto, a atual posição defensiva na área comercial, que tantas restrições e abusos têm criado aos produtos brasileiros, não parece ser a forma mais adequada para a defesa dos interesses do setor produtivo argentino. Mais abertura e menos protecionismo seria o nome do jogo. Um dos obstáculos para alcançar esse objetivo é a extrema dependência por parte do empresariado em relação ao governo de Buenos Aires, o que, visto do ponto de vista do setor privado brasileiro, dificulta uma parceria direta para desenvolver uma agenda positiva entre os empresários dos dois países.

Em atenção às indagações argentinas, não deixei de tecer alguns comentários procurando identificar as perspectivas no relacionamento bilateral para os próximos anos.

A prioridade para o Brasil das relações com a Argentina deve continuar, pois se trata de uma política de Estado, e não de governo. No caso de vitória nas urnas da candidata da situação, a atual política possivelmente seria mantida e talvez aprofundada. No caso de vitória da oposição, arrisquei a opinião de que poderá haver mudanças de ênfases e de estilo. A diplomacia da generosidade do atual governo, refletindo uma atitude de paciência estratégica, poderá sofrer modificações. As restrições comerciais que hoje já afetam quase 20% do intercâmbio comercial dificilmente seriam toleradas, como está ocorrendo agora. Observei que o governo argentino deveria tentar obter todas as vantagens possíveis ainda durante o atual governo brasileiro, porque dificilmente qualquer outro governo em Brasília manteria um ambiente tão generoso e concessivo aos interesses argentinos. Em termos de integração regional, o Mercosul continuará a existir, mas o Brasil não aceitaria ficar subordinado aos humores internos argentinos e a união aduaneira possivelmente se transformaria, na prática, numa área de livre comércio, como começa a ocorrer hoje.

Em vez de inventar desculpas - assimetrias, déficit estrutural, desequilíbrio comercial - para justificar o crescente distanciamento entre os dois países, ressaltei, de forma cândida, as vantagens para a Argentina de uma relação política e comercial aberta, sem ressentimentos nem restrições com o Brasil. Referindo-me à recente declaração da presidente Cristina Kirchner de que a Argentina quer ser sócia, mesmo menor, do Brasil, concluí, para perplexidade geral, que a Argentina apenas teria de resolver o que prefere ser em relação ao Brasil: se um México ou um Canadá.

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