sexta-feira, dezembro 11, 2009

MARIA CRISTINA FERNANDES

Do capô de Kombi à porta de geladeira


Valor Econômico - 11/12/2009

Quem desembarcou na manhã de terça-feira do Airbus da Air France em Cumbica, depois de 11 horas de voo, levaria mais sete para chegar ao miolo de São Paulo.

Do outro lado da rodovia Ayrton Senna, no extremo leste da cidade, fica o Jardim Pantanal, comunidade de 6.500 famílias assentada parcialmente na várzea do Tietê.

A comunidade ficou igualmente ilhada. Os moradores, que costumeiramente lançam mão do capô de kombis, comprados a R$ 200 no mercado de desmanche de carros para transportar seus pertences nas enchentes, este ano inovaram.

Quarenta e oito horas depois, com a água ainda nas canelas, eram vistos empurrando portas de geladeiras velhas como balsas. Nunca na história desse país a redução do IPI sobre eletrodomésticos foi tão útil para as enchentes.

O Brasil inteiro enfrenta enchentes, do Vale do Itajaí ao do Parnaíba, muitas com um número de vítimas superior ao das chuvas paulistanas. São Paulo choca pela imensa mancha urbana paralisada, em todos os seus contrastes, pela água.

Ao ligar o rádio para planejar a melhor maneira de percorrer os 67 quilômetros entre sua casa em Vinhedo e a USP, a professora Marta Arretche se deu conta de como a culpa da natureza é um recurso que transborda as fronteiras partidárias. Serve a apagões, enchentes e intempéries afins.

Guiando-se pelo noticiário das rádios, Marta levou vantagem sobre os passageiros da Air France. Ao contrário de outras duas vezes neste ano em que a chuva a deixou parada por cinco horas na Marginal do Tietê, conseguiu no rádio as informações de trajetos alternativos que lhe permitiram chegar à universidade uma hora e meia depois de ter saído de casa.

Pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole no Cebrap, Marta soma as bombas quebradas, piscinões atrasados e o estica/encolhe das verbas antienchente e vê dois problemas: a falta de gestão da região metropolitana e a ausência de diretrizes federais para as políticas urbanas.

A gestão das regiões metropolitanas, diz, foi a única iniciativa descentralizadora promulgada pelo Constituição de 1988. Cabe aos governos estaduais fazê-lo. Em São Paulo pouco se avançou na coordenação das políticas ambientais, de habitação e transporte dos 39 municípios da região metropolitana e seus 20 milhões de habitantes.

As divergências políticas entre seus administradores não são um empecilho que resista a uma política federal para a infraestrutura urbana. Marta Arretche usa o SUS como exemplo.

Lembra que o município de São Paulo foi o último da região metropolitana a aderir ao Sistema Único de Saúde. A capital ficou oito anos sem receber recursos do SUS porque Paulo Maluf queria fazer do PAS vitrine de seu governo e de seu sucessor. Pressionada pela política nacional, a saúde paulistana, estilhaçada, acabou se rendendo em 2001.

O SUS e o Fundeb, diz, são parte da explicação por que o gasto dos municípios em saúde e educação tem uma grande uniformidade em todo o país.

Ao comparar os gastos em habitação, transportes e saneamento, encontrou um índice de desigualdade duas vezes maior entre os municípios. "Não são encarados como questões sociais por excelência", diz. Basta ver o histórico apego do PMDB pelos ministérios do setor e seus orçamentos milionários para lhe dar razão.

Marta vê avanços recentes na tentativa de se estabelecer uma política nacional de segurança e assistência social, mas não enxerga iniciativas semelhantes para a infraestrutura urbana.

A dificuldade de se estabelecer as regras de uma política universalizante nessas áreas, diz, é parte do problema. É muito mais fácil mobilizar a federação por carências de saúde e educação, que afetam a todos, do que em torno de questões urbanas afeitas a algumas metrópoles do país.

Quem atravessa os buracos da BR 116 e cai na rodovia Ayrton Senna (num dia de sol) ou sai do lamaçal de Santa Catarina para conhecer as estações de tratamento de água da Sabesp pode se perguntar o que uma política nacional de infraestrutura urbana pode fazer por São Paulo. É capaz até de dar razão ao lema de 1932 que, derrotado, ainda crê na condução.

Mas está logo ali, à direita e à esquerda da rodovia que aborda São Paulo pelo leste, a síntese do Estado mais avançado da Federação, onde os extremos de sua escala social submergem à lei do caos.

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