sábado, novembro 28, 2009

ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

REVISTA VEJA
Roberto Pompeu de Toledo

Os kebabs da discórdia

"Na Rússia, como nos regimes autoritários em geral,
o patriotismo, esse conhecido último refúgio dos canalhas,
é invocado para a promoção dos interesses do poder"

Assim como o Custódio, Aleksander Vanin deu-se mal quando a política bateu de frente com a tabuleta de seu estabelecimento comercial. O Custódio, protagonista de um famoso episódio doEsaú e Jacó, de Machado de Assis, era dono de uma casa, na Rua do Catete, chamada Confeitaria do Império. Aí veio a proclamação da República e… que fazer, para evitar a sanha dos novos donos do poder? Mudar a tabuleta para Confeitaria da República era a solução mais óbvia, mas e se sobreviesse outra reviravolta? Ia ficar a mudá-la toda hora, com prejuí-zo da identificação do estabelecimento e perda do dinheiro investido nas tabuletas? O russo Aleksander Vanin é dono de um restaurante especializado em kebabs na Leningrad Prospect, no coração de Moscou. O restaurante fica em frente do Hotel Soviético, velho de mais de cinquenta anos, muito conhecido dos moscovitas e dos homens de negócios estrangeiros, e, por isso, por ficar bem do outro lado da rua, ganhou o apelido de "Antissoviético". Vanin gostou do apelido e três meses atrás o oficializou, inaugurando sobre a porta do restaurante um colorido letreiro com o nome "Antissoviético".

Incauto Vanin. Seu letreiro, tão inocente na aparência quanto a tabuleta do Custódio, transformou-se, nas semanas seguintes, no epicentro de um terremoto político. A Associação dos Veteranos de Guerra exigiu da prefeitura de Moscou providências contra um nome que fazia pouco dos heróis da Grande Guerra Patriótica, como é conhecida no país a parte que lhe coube na II Guerra Mundial, e do passado soviético em geral. Em resposta, o jornalista Alexander Podrabinek, combativo dissidente do antigo regime, acusou a Associação dos Veteranos, na qual se escondem servidores de vários tipos do período comunista, inclusive carcereiros dos famigerados gulags, de pintar a União Soviética como "um lugar de astronautas e safras agrícolas recordes", esquecendo-se das "centenas de milhares de assassinatos" e dos "milhões de torturados". Próxima a se pôr em campo, a Nashi (Nós), um grupo juvenil que conta com as bênçãos do governo e tem por método o uso da violência e da intimidação, cercou a casa de Podrabinek e passou a exigir, nada menos, que ele fosse expulso do país. Tudo isso, e muito mais – como abaixo-assinado de intelectuais em favor de Podrabinek e reação da Nashi "denunciando" que grande parte dos signatários eram judeus –, por causa do nome de um restaurante.

Ou melhor: por causa das proporções que certas miudezas são capazes de assumir, quando desencadeadas no momento certo e em terreno propício. Na Rússia de hoje, um governo autoritário alia-se às sombras do passado para justificar-se na história. Uma estação de metrô recentemente reformada tem agora a adorná-la, em grandes letras, uma linha do antigo Hino Nacional: "Stalin nos educou para ser leais à nação, ele nos inspira no trabalho e nos grandes feitos". O patriotismo, esse conhecido último refúgio dos canalhas, é invocado para a promoção dos interesses do poder. Com a Associação dos Veteranos de um lado e a Nashi de outro, ou seja, a velha-guarda atacando por um flanco e a mocidade aloprada pelo outro, configura-se um movimento de pinça agudo o bastante para fechar-se ao mesmo tempo tanto sobre um restaurante de kebabs quanto sobre um jornalista dissidente. O jornalista, depois de semanas de seguidos constrangimentos e ameaças físicas, intensos a ponto de o governo francês lhe ter oferecido asilo, foi deixado em paz. Quanto ao letreiro do restaurante…

Vanin perdeu. Teve de renunciar à lustrosa placa que anunciava o kebab como "Antissoviético", por pressão da prefeitura de Moscou. O Custódio de Machado de Assis recebeu de seu mentor, o Conselheiro Aires, a sugestão de adotar o nome "Confeitaria do Governo", para escapar da dicotomia entre Império e República. Rejeitou-a. A um governo sempre corresponde uma oposição, argumentou, e a oposição poderia implicar com ele. O episódio termina com o angustiado comerciante indeciso entre duas outras sugestões: a de emendar a palavra "império" da tabuleta com a expressão "da lei", de modo a se tornar o judicioso proprietário de uma "Confeitaria do Império da Lei", e a de socorrer-se do próprio nome e contentar-se com uma mais modesta "Confeitaria do Custódio". Vanin fez pior. Tirou o "anti" do letreiro e ficou com o "Soviético". Os kebabs ganharam significado oposto ao anterior. E a Leningrad Prospect ficou com um Hotel Soviético de um lado e um Restaurante Soviético do outro, uma solução bem a gosto do regime.

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