segunda-feira, novembro 16, 2009

MARCELO DE PAIVA ABREU

Em berço esplêndido


O Estado de S. Paulo - 16/11/2009
Em algum momento, ainda na primeira metade do segundo mandato do governo Lula, não parecia despropositado pensar que o Brasil poderia finalmente dar o salto que lhe permitiria superar de forma sustentada as suas mazelas estruturais. Seria possível finalmente abandonar o "berço esplêndido", deixar de ser o país do futuro. A robustez das políticas macroeconômicas prudentes, combinada com as oportunidades criadas pela exploração da base de recursos naturais, ampliada por novas descobertas, seria elemento essencial que permitiria tal salto. A formação bruta de capital fixo seria gradativamente aumentada e os "voos de galinha" seriam reminiscências do passado. Crescer rapidamente possibilitaria a contínua redução das desigualdades sociais, a melhoria dos níveis educacionais, o funcionamento expedito do Judiciário, a redução da criminalidade, o equacionamento do problema da habitação, a consolidação do Estado regulador.

Esse salto qualitativo requereria uma sucessão de bons governos. O que indica a análise do quadro político atual quanto à probabilidade de que a eleição presidencial de 2010 resulte em bom governo no quadriênio 2011-2014?

O presidente Lula, privado de José Dirceu e Antônio Palocci, candidatos de peso que poderiam ter consistência partidária, e embalado por seus índices de aprovação, ejetou o partido e optou pelo voo solo na rota populista. Deu o braço a Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek e mandou a consolidação partidária às favas. Escolheu pessoalmente a sucessora e está usando a máquina pública de forma escancarada para tentar viabilizar um nome de reduzida expressão política. Em meio a este processo de mergulho no populismo, instalou-se um clima de "pau na máquina", de aumento generalizado de gastos públicos, em nome de um keynesianismo de meia tigela e, em muitos casos, com propósito explícito de cooptação. Expandir a máquina pública está viabilizando o aumento do peso relativo da burocracia estatal permanente que tem laços estreitos com a coalizão governista. Que persistirá por muitos anos.

As decisões do governo quanto ao pré-sal, por seu lado, revelam retrocessos notáveis com relação à natureza das relações entre Estado empresário, iniciativa privada e contribuintes e também do grau de exposição à concorrência a que deveriam ser expostos supridores de bens e serviços estabelecidos no Brasil. A pré-candidata Dilma Rousseff, em particular, com a habitual veemência, fez a defesa do estatismo e do "nacionalismo" com base no velho "quem não pensa como eu é entreguista". Os esforços de cooptação estenderam-se à esfera empresarial, talvez emblematicamente ilustrados pela indústria naval, que viu ressuscitadas políticas que fariam inveja aos empresários da construção naval no auge do regime militar. Nenhuma lição parece ter sido aprendida com o fragoroso fracasso do passado.

As raízes dessa recaída rumo ao capitalismo de Estado têm sido associadas ao peronismo e ao getulismo. Em ambos os casos, porém, as comparações parecem anacrônicas. As políticas peronistas em benefício dos descamisados, no pós-guerra, tinham a sua racionalidade, pois a Argentina não conseguia encontrar clientes que pagassem as suas exportações à vista. Melhor que a carne fosse comida em casa. A despeito do folclore, Getúlio era recatado quanto ao estatismo, como mostram a história da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a da Vale. Longe de serem exemplos de preferência pelo Estado empresário, foi o desinteresse do capital privado que forçou o interesse do Estado. Mesmo no caso da Petrobrás, o Palácio do Catete era mais comedido quanto ao monopólio estatal do que a Lei 2.004, de 1953. Estado empresário, sim, mas supletivo às iniciativas do setor privado.

No terreno da "agitação e propaganda", essa inflexão do governo Lula tem chamuscos de culto à personalidade que configuram desserviço à biografia do homenageado. Desde o filme celebrando a vida do metalúrgico vitorioso até as perguntas capciosas incluídas por algum capacho do Ministério da Educação (MEC) no recente exame do Enade. O ambiente de bajulação é evidente. Lula não precisa disso para registrar a sua evidente importância entre os maiores nomes na vida política brasileira, mesmo que se leve em conta a deterioração recente.

Será que há otimistas em relação ao desempenho de um governo Rousseff a partir de 2011? Quem será o seu estrategista político? Quem fará a pequena política do Planalto? É difícil acreditar que Lula continue na sua posição de mentor de Dilma. Falta-lhe disposição para operar longe da ribalta. Vai poupar-se, em nome da sua candidatura em 2014. Não seria inevitável o fortalecimento dos segmentos mais fisiológicos da coalizão governamental? Por outro lado, a possibilidade de Lula lançar um plano B com chances de vitória, na hipótese de algum grande percalço da candidatura Dilma Rousseff, parece comprometida pelo calendário eleitoral.

Há os que pensam que a situação poderia ser resgatada por uma vitória da oposição. Mas é difícil ser otimista com base no que a oposição vem fazendo ou dizendo nos últimos meses. A tática de silenciar para evitar o confronto direto com o popularíssimo Lula é questionável. Fica ridícula quando o provável candidato oposicionista, quando se aventura a tomar posição, se mostra crítico tão amargo da política "de juros e de câmbio" quanto o mais aloprado xiita da coalizão governamental.

A um observador desavisado pareceria que o governo e a oposição estão em perfeita sintonia para viabilizar em esforço suprapartidário o projeto "Brasil em berço esplêndido".

Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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