terça-feira, novembro 17, 2009

LUIZ PAULO HORTA

A volta do mau humor


O Globo - 17/11/2009

Para quem ainda nem iniciou formalmente a campanha, a ministra Dilma já está batendo forte, e parece privilegiar o confronto como estratégia eleitoral. Os exemplos são todos dos últimos dias: “forças do passado que mais uma vez tentam se reorganizar, e que usam velhas táticas”; “pensam ser astutos mas são patéticos, ao tentar confundir as pessoas”; “esqueceramse do povo, dilapidaram o patrimônio público”; “não têm moral para falar de nós”, e assim por diante.

Por que tanta agressividade? Pode ser insegurança de uma candidata que não tem história política consistente, e só está onde está por decisão pessoal do presidente em exercício. Pode ser temperamento, de quem já passou por maus bocados e se acostumou a brigar.

Mas é uma linha que se afasta da “mainstream” da política brasileira.

Aqui, a palavra mágica sempre foi “conciliação” — fruto da nossa índole, ou do reconhecimento de que, sem conciliar, não se mantinha unido o gigante Brasil.

Assim se fez a conciliação do Marquês de Paraná, nos tempos de D. Pedro II, que abriu caminho para a majestosa arquitetura política do Segundo Reinado.

Esse caminho nem sempre foi trilhado, claro. A proclamação da República provocou muito nervosismo, e houve revoltas sufocadas com mão de ferro — a de Floriano.

No interior da Bahia, um grupo de fanáticos religiosos foi apontado como defensor da monarquia. Uma expedição enviada contra eles fracassou; depois outra, e mais outra, até que a quarta foi bem-sucedida, com a completa liquidação do arraial de Canudos.

Um engenheiro/repórter ali presente escreveu o que viu, e assim se tornou o autor de um dos livros-chave da nacionalidade.

O que Euclides da Cunha quis dizer, em “Os sertões”, é que havia dois Brasis, mas que juntar essas partes não podia ser obra do facão e do fuzil.

E vieram os bons políticos da República.

O Barão do Rio Branco consolidou as nossas fronteiras negociando, com uma habilidade que parece faltar ao Itamaraty de hoje. O próprio Getúlio Vargas, que podia ser feroz com seus adversários políticos, era o rei da simpatia, e levava avelãs nos bolsos para agradar às crianças.

Outro presidente querido, Juscelino, entrou para a História dizendo: “Deus me poupou o sentimento do ódio.” Em contrapartida, seu adversário mais aguerrido, Carlos Lacerda, que também tinha virtudes como político e administrador, ficou relegado a um canto do cenário, porque era mestre em fazer inimigos.

O próprio inventor da ministra Dilma, o presidente Lula, começou como sindicalista tonitruante (e muitas vezes é preciso ser duro para vencer obstáculos); mas mesmo na época do ABC paulista, era hábil em sentar numa mesa e conversar; e, depois de perder três eleições para a Presidência da República, foi transformado em “Lulinha paz e amor” por um marqueteiro de talento — o que finalmente lhe abriu as portas do Alvorada.

O atual governo petista parece empenhado em provar que tudo começou com ele, e que o passado é desprezível.

Mas essa fascinante realidade que é o Brasil contemporâneo — objeto de uma capa eufórica do “The Economist” — resulta de uma engenharia política apoiada na conciliação.

Sinistro foi o Brasil maniqueísta dos militares — em que a ministra Dilma conheceu os subterrâneos da luta armada.

Mas assim que afrouxou o cerco às liberdades, entraram em cena os profissionais da política — um Ulysses Guimarães, o grande Tancredo, o próprio Sarney — para aplainar o caminho da reconciliação. E os dois mandatos de Fernando Henrique, sobre o qual jogam lava os que agora ocupam os palácios do governo, foram um período de construção em todos os sentidos: construção econômica, com o Plano Real; construção política, com a deliberada recusa de permitir que a atmosfera se azedasse por conta de ressentimentos antigos. Isso era novo, no Brasil — sabem os que viveram os anos 50, e os 60. Mas no ciclo FHC, não havia proposta de crise que, passando pelo Planalto, não saísse esvaziada.

Conciliação no melhor sentido, voltada para a construção, e não para a acomodação.

Foi o que o Lula de 2002 entendeu; foi o seu ponto de partida para os sucessos de agora.

Em pleno sucesso, vamos voltar para o Brasil mal-humorado, para o Brasil partido em dois que tanto afligia o Euclides dos “Sertões”?

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