quinta-feira, novembro 19, 2009

JOAQUIM LEVY

"Cinquant'anni fa"


Folha de S. Paulo - 19/11/2009



O Brasil continua sensível à economia mundial, apesar das vantagens do câmbio flutuante e da relativa diversidade da sua indústria

TIPICAMENTE , quando há uma crise nos países desenvolvidos, a queda dos preços dos produtos ao consumidor, em resposta à contração da demanda interna, é lenta, enquanto a das matérias-primas se antecipa, diminuindo abruptamente a entrada de divisas nos países exportadores desses produtos. Isso torna estes países sensíveis à economia mundial, especialmente quando eles são mais monetizados.
Aí, para cada unidade de divisa que entra no país, a renda total sobe bem mais que unitariamente e se distribui por diversos setores demandantes de bens importados. Nesse caso, há uma inércia nas importações, mesmo quando a receita para as satisfazer já desapareceu.
O problema se agrava quando, em face da crise, o país desenvolvido lança mão dos fundos de que dispõe, inclusive no exterior. A contração da liquidez mundial que se segue dificulta o financiamento das importações do país exportador, o qual, além disso, enfrenta uma conta de serviços rígida, se os fundos estrangeiros que recebeu forem empréstimos ou inversões com garantia de juros.
Reservas internacionais podem dar um fôlego, mas, como elas são caras de manter, em geral, não são muito grandes. O ajuste externo acaba, então, se dando pelo câmbio, que reduz o poder de compra dos consumidores e a demanda por importados, canalizando recursos para o exportador. Em países em que o capital é escasso, mas outros fatores, como terra e trabalho, são abundantes, esse ciclo tem ainda um caráter particular.
Na fase boa, o detentor do capital prefere ampliar a escala da produção, em vez da eficiência, já que pode expandi-la contratando mais trabalhadores sem aumentar salários.
Quando a maré vira, o dilema está entre diminuir a renda do trabalhador, mantendo a lucratividade do setor exportador para preservar o PIB e a geração de divisas, ou proteger os setores domésticos, estrangulando o balanço de pagamentos e a produção. Como a segunda opção não é sustentável, em geral o ajuste decorrente da primeira é inevitável.
Ao longo do século passado, grupos de pressão, em geral urbanos, muitas vezes tentaram postergar as etapas mais dolorosas desse ajuste. Essa é também a raiz da resistência às "políticas do FMI", associadas à perda do poder aquisitivo do trabalhador e à desvalorização do câmbio, mesmo quando há algum suporte financeiro externo para honrar a conta de juros.
Nada disso é novidade. Os parágrafos acima resumem os capítulos 27 e 28 do livro "Formação Econômica do Brasil", que Celso Furtado publicou em 1959, e parafraseiam a interpretação de por que o desenvolvimento urbano e a ampliação do crédito na República aumentaram as resistências ao processo de ajuste característico do império, gerando continuadas crises a cada vez que o preço das matérias-primas caía. Até que, na década de 1930, a economia se fechou, parecendo temporariamente imune a esses problemas.
Qual a relevância dessas observações? É que, assim como Greenspan e Bush não revogaram o ciclo econômico, mas apenas lhe deram mais combustível, o Brasil continua sensível à economia mundial, apesar do bom momento que vive, das vantagens do câmbio flutuante a da relativa diversidade da sua indústria.
Às vezes não tem ficado claro em análises da crise que os preços das matérias-primas não caíram tanto recentemente porque uma tremenda injeção de liquidez nos países desenvolvidos amorteceu a expectativa de queda no consumo e a China continua comprando, sob influência de um estímulo fiscal de mais de 5% do PIB.
O dinheiro público para salvar os bancos também significou que aquele esforço dos países centrais de lançar mão dos fundos no exterior não foi necessário, o que explica parte dos recentes fluxos de capital para o Brasil.
O problema é que, em 2010 ou 2011, os países mais ricos terão que começar a sua consolidação fiscal. A tendência será de maior ajuste no preço das matérias-primas, porque a sustentação ao consumo diminuirá, e de contração dos fluxos de capital, porque o dinheiro lá ficará escasso. Esse é um cenário mais parecido com o da década de 1990 ou daquele tradicional descrito por Celso Furtado.
Mesmo que a consolidação se dê com a economia mundial crescendo (e preços mais robustos), os fluxos de capital para o Brasil podem se contrair, porque haverá mais possibilidades de investimentos no mundo.
É por isso que muitos -mesmo que não se impressionem com a resenha do padrão ouro e a reflexão de Celso Furtado- insistem que, além de eventuais barreiras ao fluxo de capitais, é fundamental o Brasil usar a política fiscal para não pressionar excessivamente o câmbio e os juros e investir no aumento da produtividade.
Há motivos para expandir o PIB e o emprego, mas, sem ser timorato, deve-se ter cuidado para que o custo de um eventual ajuste externo -mesmo com as reservas existentes- não seja desnecessariamente exacerbado pela aceleração exagerada da atividade econômica e do gasto público neste momento favorável ao Brasil.

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