quinta-feira, novembro 12, 2009

JEAN-PIERRE LEHMANN

A mulher dos sonhos da Europa

VALOR ECONÔMICO - 12/11/09


O maior desafio para a Europa do século XXI é derrubar os muros entre comunidades muçulmanas e não muçulmanas

Nasci em 1945. Meu avô era judeu alemão. Felizmente, ninguém de minha família próxima pereceu no Holocausto. Sua sombra, porém, pairou sobre mim ao longo de meus anos de formação. Quando comecei, na adolescência, a encontrar-me com contemporâneos alemães, havia reticência e desconforto inicial. Mas conversamos, conversamos e conversamos. Não havia tentativa de esconder o passado, mas havia um desejo ardente de fazer um futuro diferente. Em consequência disso, tornei-me um fervoroso pró-europeu.

Há 20 anos, o Muro de Berlim foi despedaçado por multidões em júbilo. Hoje, dez antigos países comunistas estão totalmente integrados como membros da União Europeia (UE). Se meu pai reaparecesse de repente e eu lhe dissesse que a Lituânia é um membro do bloco, ele me fitaria descrente, imaginando o que eu teria fumado.

A notícia triste, no entanto, é que embora a estrutura da União (por exemplo, o mercado único e a moeda única) tenha sido instaurada, o espírito de unidade morreu. O "projeto" europeu tornou-se um exercício de cinismo puro. Os exemplos mais deprimentes disso foram a forma como se lidou com a "Constituição Europeia" e o Tratado de Lisboa e os meios totalmente inconvenientes pelos quais o presidente europeu, parte crucial do Tratado de Lisboa, está sendo escolhido.

A boa notícia é que a candidatura de Tony Blair parece ter sido descartada. Os motivos para sua impropriedade para o cargo são numerosos demais para mencionar - apenas a palavra "Iraque" deveria ser suficiente. Caso tivesse sido escolhido, teria sido um ato de supremo cinismo e hipocrisia, mesmo pelos padrões europeus.

A má notícia é que os outros candidatos supostamente sendo cogitados - todos chefes de governo atuais ou, principalmente, antigos - são tão inspiradores quanto mingau frio. As implicações do que testemunhamos atualmente poderiam ser enormes. Mesmo com uma história tão impressionante quanto a da Europa desde que o Tratado de Roma estabeleceu a Comunidade Econômica Europeia, em 1957, isso não significa, de forma alguma, que a UE tornou-se algo permanente.

De fato, no 50º aniversário do Tratado de Roma, ninguém menos do que Jacques Delors, uma sumidade pró-Europa, expressou receios de que a UE poderia "descosturar-se"; Joschka Fischer, ex-ministro das Relações Exteriores da Alemanha, mostrou sentimentos similares em entrevista para a BBC no início de 2009.

Embora tal resultado seja improvável, descartar a possibilidade seria uma tolice complacente. Nenhuma instituição, sociedade ou civilização pode sobreviver puramente no piloto automático. A história, afinal, está repleta de casos de "ascensão e queda".

Logo, quem será o presidente da União Europeia é algo de suma importância. O que se precisa é de alguém com integridade impecável e capacidade para inspirar e, especialmente, engajar os jovens da Europa.

Vejo apenas dois possíveis candidatos que poderiam ter essas qualidades: Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda, e a ministra das Finanças da França, Christine Lagarde. A priori, não exclui homens nesta avaliação, mas nenhum me ocorreu e, de qualquer forma, o "establishment" da UE tem homens brancos de meia idade demais do jeito que está.

Embora as diferenças entre Robinson e Lagarde sejam muitas, ambas seriam excelentes escolhas. Robinson pode ser a candidata mais inspiradora, tendo em vista os projetos em que esteve envolvida desde que deixou o cargo: presidente da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), presidente honorária da Oxfam International, presidente do Instituto Internacional pelo Ambiente e Desenvolvimento, presidente do Conselho das Líderes Mundiais Mulheres e fundadora da Iniciativa de Globalização Ética.

Christine Lagarde, por sua vez, tem outras forças. É uma profissional completa, tendo presidido uma das maiores bancas de advocacia mundiais e ficado na 14ª posição na lista das mulheres mais poderosas do mundo da "Forbes", em 2008. Possui, portanto, duas carreiras brilhantes - nos negócios e na política - e um carisma enorme.

As duas mulheres são modelos exemplares e representam escolhas bem diferentes como líderes. Robinson, nascida em 1944, é uma pessoa do século XX. A presidência da UE marcaria o ápice de sua carreira. Lagarde, 53, é consideravelmente mais jovem.

Reviver o sonho europeu, contudo, requer mais do que apenas escolher uma pessoa. É preciso haver uma causa. E é aqui que paira a questão-chave sobre Lagarde: O que ela pensa a respeito da entrada da Turquia na União? Seu chefe, Nicolas Sarkozy, opõe-se com veemência, mas Sarkozy (que não fala inglês e é analfabeto em computação) dificilmente poderia ser descrito como um modelo exemplar do século XXI. Lagarde, em contraste, parece uma mulher da renascença global, embora suas visões sobre a entrada da Turquia na União Europeia possam desmentir essa imagem.

Talvez, o maior desafio para a Europa do século XXI seja derrubar os muros entre comunidades muçulmanas e não muçulmanas. Isso se aplica não somente aos cidadãos muçulmanos na União Europeia, mas também aos dos Bálcãs - mais especificamente Bósnia, Kosovo e Albânia - na ex-União Soviética e, especialmente, na Turquia.

Não há como alcançar isso da noite para o dia. O processo que havia sido iniciado, contudo, estagnou-se. Incorporar a Turquia - e, com o tempo, outros países de maioria muçulmana na Europa - na União Europeia é o sonho europeu do século XXI. Ter o presidente certo em 2010 será um passo importante nessa jornada. Robinson ou Lagarde poderiam ser os líderes inspiradores que a União Europeia precisa para tornar esse sonho realidade.

Jean-Pierre Lehmann é professor de Economia Política Internacional no IMD, de Lausanne, Suíça, e diretor fundador do The Evian Group. Copyright: Project Syndicate, 2009. www.project-syndicate.orgmedia.blubrry.com/ps/ Podcast em
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