domingo, novembro 01, 2009

CELSO MING

A desmoralização do Mercosul

O ESTADO DE SÃO PAULO - 01/11/09


Mercosul já era uma instituição desmoralizada. A entrada da Venezuela no bloco, nas condições em que ocorreu, tende a desmoralizá-la ainda mais.

Nas duas últimas semanas acirrou-se o conflito comercial com a Argentina. O governo Lula finalmente parece ter perdido a paciência e decidiu mostrar que está disposto a dispensar aos produtos argentinos o mesmo tratamento que o governo de lá tem dado aos produtos brasileiros. Ou seja, passou a exigir licença prévia à entrada de uma lista de mercadorias escolhidas a dedo.

A consequência imediata foi a detenção dos carregamentos dos dois lados da fronteira, para desespero dos exportadores. Para caracterizar o comportamento do governo brasileiro, as autoridades argentinas voltaram a tirar do bolso velha expressão que só pode ser entendida pelo seu viés cínico: assimetria. Depois explicaram que ela se deve ao fato de que seu governo nem sequer foi avisado da operação de retenção de suas exportações para o Brasil. Parece que não se dão conta de que o jogo assimétrico foi definido unilateralmente pela Argentina, e a equivalência de tratamento determinada pela outra parte é, ao contrário do que dizem, o restabelecimento de um mínimo de simetria.

Tudo isso é um despropósito, uma vez que, por força dos tratados, o que deveria prevalecer entre Argentina e Brasil (mais Paraguai e Uruguai) é a livre circulação de mercadorias. Um dos mais graves fatores de desmoralização do Mercosul é o fato de que ele deveria ser uma união aduaneira, segundo estágio de integração comercial que prevê não só livre circulação de mercadorias, mas também tratamento comercial equivalente aos países que não fazem parte do bloco. No entanto, o Mercosul não consegue ser nem sequer uma área de livre-comércio. Basta um despacho burocrático para paralisar o fluxo.

A principal razão dessa impossibilidade de integração comercial é a divergência de políticas macroeconômicas. Fiquemos com três: a Argentina opera com câmbio relativamente fixo; o Brasil, com câmbio flutuante. A Argentina não tem política monetária consistente; no Brasil vigora o sistema de metas de inflação. A Argentina impôs o confisco sobre exportações; o Brasil não tem coisas assim. Essas desigualdades explicam boa parte das distorções comerciais. Se nem o câmbio caminha na mesma direção, como poderia haver equivalência de preços?

O empenho do presidente Lula e a decisão de permitir a entrada da Venezuela no bloco agravam o quadro de distorções. Ela foi admitida sem nenhum prazo de equalização dos fundamentos macroeconômicos. Como observou o ex-ministro da Fazenda e ex-embaixador do Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC) Rubens Ricupero, a China só entrou na OMC depois de 12 anos de negociação e a Rússia está na fila há 19 anos. No entanto, a Venezuela não fez nenhuma concessão importante aos quatro sócios do Mercosul nem fez previsão de quando iniciará a unificação das tarifas comerciais.

Como todos sabemos, na Venezuela estão em vigor fortes restrições à democracia. E, no entanto, o Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, prevê cláusula democrática para a admissão ou a permanência de qualquer um de seus membros. Mas essa é apenas mais uma grave distorção que desmoraliza o bloco.

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