segunda-feira, novembro 23, 2009

BRASIL S/A

Tóxicos banidos

CORREIO BRAZILIENSE - 23/11/09


Ainda que a ação coordenada entre o BC e a CVM venha depois de arrombada a porta, ela é muito importante

O Banco Central está empenhado até o pescoço em uma ação para banir do país os chamados “derivativos tóxicos”, operações no mercado futuro de dólar que levaram gigantes como a Sadia, Aracruz Celulose e Votorantim a um passo de quebrarem no auge da crise mundial, no fim do ano passado.

Um grupo de técnicos coordenados pelo diretor de Normas do BC, Alexandre Tombini — candidatíssimo ao posto de presidente da instituição, caso Henrique Meirelles saia candidato ao governo de Goiás em 2010 —, trabalha pesado para fechar todas as brechas na lei que hoje permitem que empresas e bancos assumam riscos além da conta e sem que os órgãos reguladores tenham noção do tamanho do perigo.

O trabalho vem sendo feito em conjunto com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), responsável pela fiscalização das companhias listadas em bolsa de valores, justamente as que mais recorreram aos derivativos como forma de bombar os resultados para impressionar seus acionistas por meio do pagamento de elevados dividendos (rateio de parte dos lucros). Estima-se que mais de 80% dos prejuízos de US$ 10 bilhões contabilizados com derivativos tóxicos em 2008 foram registrados por empresas e bancos com ações negociadas no mercado.

Tais operações só se tornaram públicas quando a cotação do dólar bateu em R$ 2,50, fazendo sangrar companhias até então tidas como exemplos de solidez. Irresponsáveis, apostaram o que podiam e o que não podiam na valorização do real frente à divisa americana. A maioria dos contratos era de gaveta, ou seja, fechados no mercado de balcão, do qual os reguladores estão distantes.

Especulação de volta

No governo, acreditava-se que as empresas tinham aprendido a lição — a Sadia foi comprada pela Perdigão; a Aracruz se agarrou ao grupo Votorantim que, por sua vez, foi obrigado a vender 49% de seu banco, o financiador de várias operações, ao Banco do Brasil. Mas não foi o que aconteceu. Antes mesmo de o estouro da bolha imobiliária dos Estados Unidos completar um ano, em setembro último, tanto o BC quanto a CVM constataram que várias empresas haviam voltado a especular com derivativos tóxicos, incentivando a formação de bolhas no mercado cambial.

“Infelizmente, percebemos que empresas e bancos só se impõem limites se as autoridades reguladoras apertam o cerco. Se estão livres, deixam o bom senso de lado, visando somente o aumento dos lucros”, resume, de forma clara, um técnico do BC. Por isso, acrescenta ele, há pouco mais de uma semana, o BC baixou a Circular nº 3.474, obrigando empresas e bancos que tomam empréstimos no exterior, com cláusulas que embutem riscos de oscilações dos mercados, a registrarem os contratos em uma câmara de compensação (clearing). Com isso, o BC dará visibilidade a operações que antes ficavam sob um perigoso sigilo. Estima-se que somente essas transações movimentem US$ 35 milhões por mês.

Sem maquiagem

Para reforçar o controle, a CVM vai exigir que, a partir de 2010, todas as empresas que emitem valores mobiliários, não só as que têm ações em bolsa, passem a explicitar a totalidade das operações com derivativos em seus informativos anuais (IAN). Além de detalharem todos os riscos que estão correndo com essas transações e os impactos que elas podem causar em seus resultados, as companhias terão que justificar por que optaram por recorrer a tais instrumentos e revelar quais os mecanismos usados para monitorá-los. Todos os dados constarão de um formulário específico, de forma que os investidores, por mais leigos que sejam, saibam os riscos que estão correndo ao comprar papéis dessas empresas.

No auge da crise, a CVM passou a exigir das companhias listadas em bolsa, em seus balanços trimestrais, uma análise de sensibilidade dos riscos apresentados por operações com derivativos. Agora, as informações serão replicadas nos demonstrativos anuais, numa linguagem clara, inclusive para que se possa responsabilizar os executivos que aprovaram os negócios.

Na Sadia, por exemplo, descobriu-se que um diretor e um gerente da área financeira tinham autonomia demasiada para assumir riscos e, pior, que eles manipulavam dados para não dar a dimensão exata dos perigos a que a empresa estava exposta. Pelos contratos com os bancos, para cada centavo de valorização do dólar ante o real, a Sadia tinha que pagar em dobro. Resultado: a companhia perdeu US$ 2,5 bilhões com derivativos tóxicos.

Memória curta

Ainda que a ação coordenada entre o BC e a CVM venha depois de arrombada a porta, ela é muito importante. É em momentos de euforia, como o que vivemos atualmente, em que todos alardeiam o fato de o Brasil ter saído mais forte da crise e de estar recebendo uma enxurrada de dólares, que se tende a relevar os riscos. Se empresas, bancos e o mercado em geral têm memória curta, os órgãos reguladores e fiscalizadores têm a obrigação, a todo momento, de lembrar que não permitirão abusos. Nem que para isso tenham de apertar a lei ao extremo.
Vicente Nunes é repórter especial e blogueiro

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