quinta-feira, novembro 05, 2009

ANA CAROLINA CABRAL-MURPHY

Brasil-China: livre comércio, lixo tóxico e lógica econômica


Valor Econômico - 05/11/2009

Brasil deve ir com cuidado; o que os chineses mais querem é ter acesso a matérias-primas e bens primários a preço baixo

Há quase duas décadas, as políticas de incentivo econômico para os empresários americanos transferirem a produção de bens de consumo, com alto teor poluidor, para países como China e México, vêm aumentando. Isso tornou a indústria norte-americana menos competitiva e desequilibrou a balança comercial dos Estados Unidos, contribuindo para a valorização do dólar e fazendo com que cerca de 70% da economia norte-americana ficasse dependente do setor de prestação serviços. O Brasil corre o risco de trilhar esse mesmo desequilíbrio.

Quando Larry Summers, o atual diretor do Conselho Econômico Nacional dos Estados Unidos, trabalhou como economista-chefe do Banco Mundial, ele ficou notório por sua inteligência, sagacidade, mas também por ter assinado um memorando - em conjunto com o economista Lant Pritchett - que continha mensagens que foram interpretadas como um alerta de que o livre comércio não iria beneficiar o meio ambiente nos países em desenvolvimento. Esse argumento foi desbancado pelo Prof. Jagdish Bhagwati em seu livro em defesa da globalização.

Na imprensa, o memorando continha a caligrafia de Summers explicando sarcasticamente que "a lógica econômica por trás de despejar um monte de lixo tóxico no país de menor salário é impecável". Ao entrar para a administração de Bill Clinton, Summers trabalhou com políticas de incentivo econômico para os empresários americanos transferirem a produção de bens de consumo com alto teor poluidor, principalmente para a China. Com o passar dos anos, isso tornou a indústria norte-americana menos competitiva.

Na China, os incentivos fiscais foram recebidos sem um planejamento estratégico para a obtenção de um crescimento sustentável dos parques industriais. O resultado foi a rápida contaminação dos principais rios, solo, lençol freático e do ar nas grandes cidades e regiões industriais. A China hoje detém um dos piores índices de emissão de CO2 do mundo para as grandes cidades. De acordo com a Agência Europeia do Meio Ambiente (European Environment Agency - EEA) e o Conselho Mundial de Energia (World Energy Council), as projeções de emissões de CO2 para a China tendem a dobrar. Várias áreas do país estão sufocadas pelo excesso de monóxido de carbono e pela péssima administração do lixo industrial.

A maioria dos trabalhadores chineses é de migrantes internos, considerados ilegais ao se transferirem de uma província chinesa para outra. Como imigrante ilegal, passa a ser pago com salário abaixo do piso aceitável pelo Partido Comunista. O trabalhador é considerado um foragido e perde todos os seus direitos de educação e assistência médica do governo. Assistência que, dentro do "modelo do governo comunista", é motivo de orgulho. Esse é o resultado do "boom" de exportação de produtos baratos, manufaturados a custo baixo, utilizando migrantes internos oprimidos pelo regime.

Uma das estatísticas pouco divulgadas sobre a China é que esses "migrantes", apesar de receberem um salário abaixo do piso mínimo nacional, em seu trabalho ilegal, são computados pelo governo central como recebendo o piso mínimo nas suas cidades de origem. Assim, as províncias continuam a receber verbas federais pela população ausente que se deslocou. Cidades como Xangai e Shenzen passam a cobrar impostos mais altos para contrabalançar a explosão urbana não computada pelo governo central (Beijing).

As estatísticas de renda fornecidas pela China para os dados do Banco Mundial (World Development Indicators), tendem a colocar a receita média de um trabalhador chinês acima dos dados reais que dificilmente são verificados. O país raramente permite a entrada de jornalistas e pesquisadores estrangeiros para conduzir pesquisas sociais ou auditorias independentes, sem o filtro do governo.

Os resultados questionáveis de PIB e a paridade de consumo PPP (Purchasing Power Parity) criam pressão adicional para a China exportar seus produtos a um preço abaixo do mercado e acumular reservas em moedas estáveis em prol dos seus índices macroeconômicos. Em um mercado racional, sem arbitragem ou interferências de Beijing, a moeda chinesa (o Renmimbi) deveria apreciar. Para evitar novas revoltas contra as políticas de migração interna, inflação acima de 10% ao ano, a falta de transparência dos governos locais e a baixa assistência social, os economistas precisam abrir novos mercados para manter essa parte da população ocupada e adotar novos pacotes econômicos para aumentar as exportações.

O plano que foca no aumento da demanda interna é discurso "para inglês ver". Quem conhece a cultura chinesa sabe que vai demorar entre 10 a 20 anos para essa população criar uma cultura de consumo. Com exceção dos estudos do professor Charles Calomiris, os números de demanda na China são extremamente questionáveis por motivos demográficos e culturais não tão óbvios assim.

O Brasil corre o grave risco de entrar no mesmo ciclo vicioso em que os EUA estiveram nas últimas décadas ao aceitar a moeda chinesa como meio de pagamento para a exportação de bens primários - dado que a demanda industrial para bens de consumo chineses está em declínio na Europa e EUA. Ao diversificar suas reservas com a obtenção de yuans, o Brasil terá que reinvestir essa moeda no próprio mercado chinês, comprando bens de consumo secundários, investindo e/ou transferindo unidades da indústria brasileira para cidades chinesas. Isso é um erro porque vai reduzir a capacidade competitiva da indústria brasileira e pode ferir a indústria nacional de bens secundários, fazendo com que o Brasil fique fadado a exportar bens primários e matérias-primas.

Se analisado com cautela dentre as políticas monetárias chinesas, o Banco da China não tem nenhum tipo de incentivo substancial para garantir a apreciação do renmimbi. Ao contrário, um dos únicos interesses comerciais da China com o Brasil é ter acesso a matérias-primas e bens primários a preço baixo. Assumindo-se uma desvalorização da moeda, o Brasil irá correr um alto risco de ficar atrelado a flutuações de uma moeda instável.

Ana Carolina Cabral-Murphy é pesquisadora da Columbia University de Nova York (EUA).

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