segunda-feira, outubro 26, 2009

JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE

Os mistérios da redenção segundo Lula

O ESTADO DE SÃO PAULO - 26/10/09


Uma "nova independência" foi o objeto central do pronunciamento do presidente Lula por ocasião do 7 de Setembro. Diferentemente da proclamação de dom Pedro I, a de Lula não enuncia um fato novo que caracteriza uma ruptura com o presente, mas "festeja o futuro" (p. 1). Dentre as ações anunciadas, uma se destaca de forma peremptória: anunciar que Lula aperfeiçoou a obra de Deus ao outorgar ao povo a propriedade do petróleo e do gás, escondidos pela graça divina em nossas profundezas terrestres e marítimas. Aí está a essência da proclamação.

"Esta nova independência", proclama o presidente, "tem nome, forma e conteúdo." O nome é pré-sal, o conteúdo são "as gigantescas jazidas de petróleo e gás descobertas" e a forma é "um conjunto de projetos". Assim sendo, nas palavras do próprio Lula, a "nova independência" é um nome (pré-sal), uma descoberta - que já estava lá - e um conjunto de projetos.

Na sequência, Lula enumera ações e nomeia seus agentes. A primeira ação consiste em pedir a "vocês", o povo, que acompanhem, se informem, reflitam, se engajem nas discussões e nos debates. Lula encaminha projetos e faz propostas, enquanto "vocês", o povo - bestificado? -, acompanham, se informam, refletem e se engajam, mas não são convocados a tomar iniciativa nem a alterar projetos ou propostas.

Lula anuncia um resumo "em duas frases" (que, na verdade, são três) das propostas do governo: elas garantem as riquezas nas mãos dos brasileiros, impedem gastos de governantes irresponsáveis e obrigam a gastar em educação, ciência e tecnologia, e todos os outros gastos politicamente corretos. Talvez percebendo a banalidade da oferta, Lula recorre ao que chamou de "conteúdo" da "nova independência", o pré-sal: "Uma das maiores descobertas de todos os tempos." Emenda à altura do soneto, pois anuncia uma "descoberta" velha de mais de ano.

A ação seguinte, cujo agente não é aparentemente Deus, mas o próprio Lula, consiste em conclamar "vocês" a fazerem o que um povo soberano "deve fazer": garantir que a riqueza não se escape, providenciar meios mais eficientes de explorá-la, modernizar suas leis e não repetir erros do passado. Se Lula se arvora a conclamar "o povo soberano" e a lhe confiar missões, é porque se coloca acima dele.

Outra ação também tem por objeto a "nova independência", mas sob nova luz. O pré-sal já não é apenas dádiva, mas "uma faca de dois gumes": "Alguns países pobres, ricos em petróleo, não conseguiram jamais sair da miséria." Mas Lula não diz que a maioria dos países ricos em petróleo e gás não conseguiu jamais sair da servidão.

Esta ação em particular é enunciada com precisão: "Por isso, dei orientações bem claras aos ministros." Lula é o protagonista, a dádiva de Deus já não é tudo. Afinal, as "gigantescas jazidas" formaram-se há milhões de anos e poderiam ter permanecido ocultas, não fosse tudo o que Lula dá por certo que nunca antes existiu neste país.

A "primeira orientação" de Lula é inacreditável! "Primeira: o petróleo e o gás pertencem ao povo brasileiro." Lula vem aperfeiçoar a obra divina: agora sabemos que foi Lula quem outorgou ao povo brasileiro a propriedade do pré-sal e que seu papel é infinitamente maior do que a dádiva divina das jazidas.

A quarta ação consiste em substituir o regime de concessões pelo de partilha, porque "quase todos os países que têm grandes reservas e baixo risco de exploração adotam esse sistema". Lula está coberto de razão, mas em nenhum desses países o regime de partilha garantiu que o povo saísse da servidão. Com a exceção da Noruega, o que confirma a regra.

Outra mudança é transformar a Petrobrás em operadora única. Lula apresenta quatro razões: ela é uma das maiores empresas de petróleo do mundo; com ela saberemos tudo sobre as reservas; com ela aperfeiçoaremos nossa tecnologia; e, finalmente, faremos da Petrobrás uma empresa ainda mais forte. Com exceção de tornar a Petrobrás mais forte, todas são justificativas redundantes.

A segunda proposta é criar a Petro-Sal. Suas justificativas são duas: gerir os contratos de partilha e os de comercialização e ser o olho do povo na fiscalização. Como ambas já são ou poderiam vir a ser atribuições da Petrobrás ou da Agência Nacional do Petróleo (ANP), a Petro-Sal é apenas uma marca - que, aliás, já tem dono.

Mas Lula não é de se deter diante de títulos de propriedade ou de precedência anteriores à era Lula. Daí ignorar Getúlio, que criou o monopólio estatal e a Petrobrás; Geisel, que dotou a empresa de investimentos e acesso à tecnologia de ponta; e Fernando Henrique, que a levou ao estágio atual de empresa global quando a livrou do monopólio, restrito agora ao Estado brasileiro.

Em suma, o petróleo brasileiro é uma dádiva divina. Mas trouxe também "conflitos, desperdícios, agressões ao meio ambiente, desorganização da economia e privilégios para uns poucos" (p. 2). A dádiva divina pode tornar-se maldição. Mas o presidente, num ato de redenção, aperfeiçoa a obra de Deus, outorga ao povo e ao Estado brasileiro a propriedade das jazidas, fortalece a Petrobrás e cria a Petro-Sal.

Concluo que a discussão do pré-sal não se pode ater às tecnicidades da exploração, do regime de risco e da distribuição de ganhos. O núcleo mais relevante na proclamação solene de Lula é outro. Lula está demarcando não apenas uma partilha de bens deste mundo, mas o abismo que enxerga entre ele e o resto da humanidade. Certo de que decide o que quiser, pode reescrever continuamente a História do mundo e do Brasil e ungir com seu carisma os príncipes e princesas de sua escolha, também lhe compete decidir o presente e o futuro da Nação. E nós, o povo, em tudo isso? O povo? Ora, o povo...

José Augusto Guilhon Albuquerque é professor aposentado de Ciência Política e Relações Internacionais do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP)

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