quarta-feira, outubro 07, 2009

JARBAS J. DINKHUYSEN

O custo de uma vida


O Estado de S. Paulo - 07/10/2009
Qual o custo de uma vida para o Estado brasileiro? A razão por que pergunto está na minha indignação, como cirurgião cardiovascular, em aceitar candidatos para transplantes de coração, inscrevê-los na Lista Única de Receptores e nem sequer chegar a realizar os procedimentos porque os pacientes faleceram antes mesmo de surgir um doador compatível. Ou pior, porque o Sistema Único de Saúde (SUS) não aceita dar cobertura financeira pela terapia alternativa, como a colocação de ventrículos artificiais, que pode garantir que esses doentes vivam o suficiente para aguardar a doação do órgão. Afinal, segundo a Constituição brasileira, saúde é direito de todos e dever do Estado, e isso se aplica inclusive aos portadores de doenças mais dispendiosas.

Os dados são contundentes. A taxa de mortalidade de pacientes à espera de transplante de coração é persistentemente superior a 50%. No ano passado, na lista de espera da Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO) do Estado de São Paulo, esse porcentual chegou a 57%. É inaceitável deparar com informações como essa, num país que está entre os seis mais respeitados em cirurgias cardíacas no mundo, ficando atrás apenas de Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra e Turquia.

Aliado a isso, a cada dez pacientes que chegam ao ambulatório com insuficiência cardíaca terminal, apenas um consegue entrar na fila de espera, pois a maioria tem contraindicações ao transplante. Esses nove doentes vão morrer certamente, pois não lhes é dado o direito de passar por um tratamento alternativo, como, por exemplo, a implantação dos já citados ventrículos artificiais.

E por que não dar aos doentes cardíacos a mesma chance de vida que se dá aos que aguardam por transplantes de rins e fígados? Afinal, estes últimos têm já garantida a possibilidade de fazer hemodiálise e hepatodiálise enquanto estão na fila de espera dos órgãos de que precisam.

Os ventrículos artificiais, comumente já utilizados e consagrados universalmente, têm como função ajudar o coração a bombear o sangue do corpo e podem ser empregados em três modalidades. A primeira é chamada ponte para transplante, a qual dá ao paciente chance de aguardar o surgimento de um doador compatível. A segunda, que é aplicada em casos de anomalias transitórias do órgão, é a ponte para recuperação, em que o aparelho não só mantém a vida do doente, mas permite a recuperação das funções do seu coração, sendo retirado subsequentemente. E, finalmente, a chamada terapia de destino, em que a aplicação é feita em caráter definitivo quando o doente tem contraindicações ao transplante, como incompatibilidade imunológica, infecções crônicas e idade avançada.

Podem auxiliar o ventrículo esquerdo ou ambos os ventrículos, ou mesmo substituir totalmente o coração nativo. O bombeamento do sangue pode ser axial ou pulsátil por acionamento eletromecânico ou pneumático, e eles são implantados por meio de operações específicas em posição externa do tórax ou intratorácicos, junto ao coração, por implante parcial ou total.

O coração é o órgão transplantável mais sensível do corpo humano e a seleção do doador deve ser criteriosa, pois, caso contrário, os índices de mortalidade podem ser elevados. Isso não ocorre com outros órgãos, pois a margem de aceitação é mais maleável. Assim, o porcentual de aproveitamento de corações doados é menor, em torno de 20%, sendo um fator determinante para o número elevado de óbitos na fila de espera.

Com a implantação dos ventrículos conseguiríamos resgatar aproximadamente 80% dos pacientes e transplantá-los com segurança. Atualmente, o número de transplantes no Brasil está ao redor de 200 por ano e esse número poderia praticamente dobrar caso os procedimentos para a implantação do dispositivo fossem regulamentados pelo SUS, com dotação orçamentária para esse fim.

O governo alega que esse procedimento é muito caro e beneficiaria poucas pessoas, afinal, são milhares os receptores renais, centenas os de fígado e os de coração, apenas dezenas.

Há, porém, fortes argumentos a serem defendidos. Hoje o Estado não gasta diretamente com a colocação do ventrículo, mas indiretamente acaba arcando com os custos altíssimos de internações e todos os tratamentos envolvidos, por tempo indeterminado. Explico: os pacientes da fila de espera de um coração que passam ao estado crítico - que estão na iminência da morte e não podem aguardar em casa - ficam no hospital, sendo custeados pelo SUS. Além disso, ao iniciar a implantação dos ventrículos no Brasil, e com o uso cada vez maior desse procedimento, o custo do aparelho seria reduzido, segundo regras de mercado, semelhante ao que ocorreu nos EUA e na Europa.

Certamente não estamos distantes do momento em que a aplicação dos ventrículos artificiais venha a ser realizada coercitivamente, ou seja, por força de medidas liminares deferidas pelo Poder Judiciário, atendendo ao preceito constitucional do direito à vida e à saúde.

É importante ressaltar que já há tecnologia desenvolvida para fazer essas operações no Brasil. O Incor-SP já concluiu o programa chamado Dispositivo de Assistência Ventricular, que tem sido aplicado clinicamente como ponte para transplante, ainda sem a cobertura pelo SUS. E no Instituto Dante Pazzanese estão sendo desenvolvidos projetos que se encontram em fase de avaliação experimental.

Falta agora o SUS cumprir o que a Constituição determina e agregar esse tratamento à lista de modalidades atendidas pelo sistema, dando cobertura à colocação dos ventrículos artificiais.

Jarbas J. Dinkhuysen, livre-docente da Faculdade de Medicina da USP, professor adjunto da Faculdade de Medicina da Universidade do Amazonas, é médico-chefe da Seção Médica de Transplantes do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia de São Paulo

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