quarta-feira, setembro 30, 2009

MÍRIAM LEITÃO

Dinheiro dos outros


O Globo - 30/09/2009

Uma nova fronteira da modernização da economia brasileira ainda não foi transposta. É delicada, difícil, mas inevitável. A caderneta de poupança tem uma remuneração garantida de 6,2% mais TR, num país em que os juros básicos já estão na altura dos 8% e a inflação em 4,5%. O FGTS não tem garantia de inflação, e por isso os trabalhadores acham que foram lesados.

São dois instrumentos de poupança popular e duas soluções diferentes, e ambas trouxeram efeitos colaterais.

O governo quer mandar um projeto de taxação de 22,5% sobre a caderneta de poupança achando que, com isso, reduzirá a atratividade excessiva que a caderneta pode ter por não pagar imposto de renda.

A caderneta é um instrumento fácil de aplicação. A ideia do Ministério da Fazenda foi propor um imposto que incide acima de um determinado valor, mas que recai sobre os depósitos acima desse limite e se o poupador tiver duas ou mais cadernetas tem que fazer um ajuste na declaração de renda.

Ou seja, o governo complicou o que era simples.

Louve-se a coragem do Ministério de Fazenda de propor uma medida impopular quando o ambiente do Congresso está condimentado pelo pré-sal eleitoral. Mas a proposta é ruim. Não há solução fácil. O ideal seria tirar a remuneração prefixada da caderneta de poupança para que ela não seja o impedimento à queda dos juros. Mas o risco é que os poupadores podem se sentir lesados como se sentem os do FGTS.

O GLOBO tem publicado contas que mostram que há alguma coisa errada no Fundo.

Só de 2002 para cá, se comparadas com a inflação, as contas do FGTS perderam R$ 53 bilhões. De 2000 para cá, os cotistas teriam perdido 13% na comparação com a inflação do período.

O país está assim numa sinuca de bico. A caderneta de poupança que tem garantia de remuneração alta é considerada hoje uma barreira para a queda dos juros e uma fonte de distorções. O FGTS que é corrigido por TR mais 3% perdeu para a inflação.

A economia é desindexada e tem que se desindexar mais, mas ao mesmo tempo ninguém quer perder da inflação. Nada disso é simples de resolver.

O FGTS é uma poupança compulsória à qual seu dono não tem acesso. O governo se comporta como se o dinheiro fosse dele. Recentemente impediu que o FGTS fosse usado para a compra de ações da Petrobras; dias depois usou R$ 3 bilhões do fundo para incentivar empreiteiras.

É como se o trabalhador não tivesse capacidade de tomar decisões próprias sobre seu dinheiro. O governo se comporta como um tutor, que guarda o dinheiro e diz quando e quanto seu dono pode sacá-lo. O dinheiro é manipulado, principalmente por este governo, como se fosse um fundo governamental. É um fundo dos trabalhadores.

Tem a mesma sem cerimônia com o FAT, que tem um objetivo específico que é pagar o seguro-desemprego.

Indexar o FGTS num momento em que o país tem que dar um passo adiante na desindexação é um retrocesso; mas usar o dinheiro do trabalhador para alavancar projetos governamentais extraorçamentários, pagando pouco ao dono do dinheiro e vedando a ele o acesso aos recursos, é uma distorção sem tamanho. O Brasil precisa aumentar a taxa de poupança, mas com incentivos à poupança voluntária.

Os poupadores de caderneta de poupança podem dizer, cobertos de razão, que em todo o período no qual perderam descaradamente para os rendimentos dos fundos ninguém achava que isso criava distorção no mercado. Por isso é preciso construir uma solução justa.

Não é um problema trivial.

Na economia há outros entulhos da era de alta inflação.

As tarifas públicas têm garantia de indexação mais outros custos, o que produz maluquices. É o caso de reajustes este ano acima de 20% no setor elétrico. E empresas não querem abrir mão da indexação. O governo Lula trocou o indexador da telefonia de IGP-M para IPCA e o consumidor saiu perdendo, já que o IPCA subiu mais. Os donos de imóveis conseguiram o mundo ideal: os alugueis são corrigidos por IPCA ou IGP, o que for maior.

Os fundos de pensão têm limites de remuneração mínima que são compatíveis apenas com um cenário de juros altos. Para adaptá-los ao novo cenário, o governo decidiu dar a eles mais liberdade para aplicações de risco. Solução perigosa. Primeiro porque de novo o governo está decidindo sobre o dinheiro dos outros; segundo porque em qualquer país existem regras prudenciais para aplicações de fundos de aposentadoria, e por isso os maiores investidores institucionais só podem ir para países com grau de investimento; terceiro porque os maiores fundos do Brasil são de empresas estatais e o governo terá que pagar parte da conta caso eles entrem em desequilíbrio.

Como se vê, regulação sobre dinheiro alheio é um campo minado. Principalmente num país que tem heranças do tempo da desordem inflacionária que foi encerrada há 15 anos com o sucesso do Plano Real. Ajudaria se o governo seguisse duas normas de ouro: primeiro, não complicar instrumentos de poupança que são usados por pessoas de baixa renda, como a caderneta de poupança; segundo, entender que o dinheiro do FGTS e FAT não é governamental, pertence ao trabalhador.

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