quinta-feira, setembro 10, 2009

EUGÊNIO BUCCI

A TV pública não é do governo


O Estado de S. Paulo - 10/09/2009

Há pouco mais de dois anos integro o Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, à qual pertence a TV Cultura, de São Paulo. Sou membro eletivo, ou seja, fui eleito pelo voto dos demais conselheiros. Durante meu mandato tenho procurado evitar debates públicos sobre a instituição; dirijo minhas opiniões ao próprio conselho e assim tento cumprir o papel que me cabe. Em certas ocasiões, contudo, o debate público é inevitável. Foi assim quando os índices de audiência da TV Cultura foram duramente questionados dentro e fora do colegiado de que participo. Na época escrevi, aqui, neste espaço, o artigo Audiência em TV Pública (26/3/2009). Permanecer em silêncio seria omissão. Agora surge uma situação análoga, de igual gravidade. Novamente, não é hora de calar.

Desta vez, o que me motiva é o mal-estar causado pela transmissão ao vivo, na tela da Cultura, de uma fala do governador José Serra. Serra discursava numa solenidade oficial, na tarde de 26 de agosto de 2009, e suas palavras foram ao ar em flashes que interromperam a programação normal. É bem verdade que, para a Fundação Padre Anchieta, não se tratava de uma data qualquer. Exatamente naquela solenidade, ela anunciava o lançamento de dois novos canais digitais, o Univesp TV e o Multicultura: o primeiro, com três horas de programação diária inédita, dedicado ao ensino a distância e o segundo com as produções que a emissora paulista vem exibindo há 40 anos. A simples estreia dos dois canais digitais é um feito histórico: inaugura a chamada multiprogramação digital no País. Merecia comemorações. Acontece que, a título de transmitir um trecho da solenidade, foram veiculados quatro minutos ininterruptos de um pronunciamento político do governador. Ele falava em defesa do projeto da Univesp, a Universidade Virtual do Estado de São Paulo, e aproveitou para atacar os que se opõem à iniciativa - que, como é óbvio, não tiveram acesso ao microfone para expor seus argumentos. Com isso, os flashes - que, ao todo, foram três, somando quase sete minutos - assumiram o aspecto de rede oficial, dessas em que só a autoridade tem direito a voz. Durante aqueles minutos, a Cultura, tragicamente, pareceu uma emissora governamental. Nada mais descabido. Não é preciso ser especialista no assunto para saber que não consta da missão da nossa TV pública o dever de passar recados ao vivo do Poder Executivo.

Como conselheiro, estranhei o episódio. Já na semana passada, no dia 1º de setembro, durante a reunião do Comitê de Programação, órgão do Conselho Curador, expressei o meu estranhamento ao presidente, Jorge da Cunha Lima, e aos demais presentes. Até aquele momento, entretanto, eu só tivera conhecimento da história pelos jornais. Era preciso que eu analisasse a íntegra dos flashes para concluir o meu juízo. Há dois dias, finalmente, vi as imagens, numa cópia em DVD que recebi da direção da emissora, e confirmei minha impressão inicial: aquele foi um capítulo infeliz, atípico nos costumes da TV Cultura.

O que eu tinha lido na imprensa fazia sentido. A Folha de S.Paulo noticiou os flashes logo no dia 27 de agosto (Cultura corta programação para passar discurso de Serra). Pouco depois, no dia 30, a coluna de Elio Gaspari, na Folha e no jornal O Globo, registrou o fato e observou que a TV Brasil, do governo federal, não tem cometido o mesmo erro. Aliás, a pergunta é boa: o que aconteceria se um discurso do presidente da República interrompesse por quatro minutos a grade da TV Brasil? Tenho para mim que isso renderia notas de primeira página e, na sequência, um articulista iria brandir mais esse "escândalo" para pedir o fechamento da emissora. No caso de Serra, a reação até que foi moderada, mas algum barulho se ouviu. Agora, o debate interessa à sociedade e à causa da comunicação pública: não há motivos para fugir a ele.

As rádios e televisões não-comerciais carecem de legitimidade no Brasil. Desde muito tempo. A fonte do déficit de legitimidade é a alegre servidão com que elas se apressam a agradar aos governantes. Em todas as regiões do País. Nesse cenário, a TV Cultura sempre reluziu como um caso à parte. Com sua tradição diferenciada, ela não se tem caracterizado pelo vício da servidão promíscua. No dia 26 de agosto, porém, até a Cultura escorregou. Com aqueles três flashes, deixou no ar a impressão de que sua independência teria fraquejado. O saldo mostrou-se claramente negativo - não apenas para a Fundação Padre Anchieta, que viu manchado o anúncio de seus dois novos canais, mas para todas as televisões do campo público (para usar aqui a expressão de Gabriel Priolli), que têm nela a principal referência.

Sabemos que não basta combater os conflitos de interesse, é preciso repelir com vigor a mera aparência de que eles possam estar instalados. Nesse caso, a simples aparência de conflito de interesses é destruidora. Quando vê o ponto de vista do governador merecer tratamento privilegiado, o telespectador desconfia. Com razão. Permitir que o espaço editorial de uma emissora pública, que pertence à sociedade, seja abruptamente invadido por interesses governamentais é mais ou menos como abrir uma suíte VIP num hospital municipal para acomodar parentes do prefeito. Essa impressão não faz jus à história da TV Cultura. Muito menos ao seu futuro. Do governo, qualquer governo, a TV pública deve saber manter distância. Se não for crítica e independente, ela é apenas desnecessária, porque irrelevante.

Agora, a melhor forma de superar o episódio é debatê-lo. Debatê-lo para não repeti-lo. O deslize do dia 26 de agosto não é um atestado de governismo. Ele constitui um erro, sem dúvida, mas um erro menor se comparado aos acertos da atual gestão da Cultura. Que os acertos prevaleçam.

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