sábado, agosto 22, 2009

ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

REVISTA VEJA
Roberto Pompeu de Toledo

O poder do pijama

"Getúlio poderia ter vestido um terno. Poderia,
se optasse por um aparato teatral, ter recorrido
a um smoking. Não. Nos trajes mesmos em que
se deitara, deu-se o tiro"

O pijama de seda e de listras que o presidente Getúlio Vargas usava quando se suicidou voltará a ser exibido, a partir desta segunda-feira, 24 de agosto, no Museu da República, instalado no mesmo Palácio do Catete em que se deu o fato. Fazia oito meses que o pijama estava ausente da vista do público, recolhido para trabalhos de restauro. Eis um prato cheio, para quem tem o gosto fetichista (e poucos não têm) de contemplar um objeto que fez história. Pode-se ver até, à esquerda, junto ao bolsinho, a marca da bala com que seu usuário alvejou o próprio coração. O pijama de Getúlio é uma das peças capitais da história do Brasil. Não tem o esplendor da coroa de dom Pedro II, mas sua humildade só lhe aumenta a carga simbólica. A data de sua volta aos olhos do público coincide com o 55º aniversário da morte do dono.

Pijamas, com toda a singeleza de peça doméstica, de uso na hora desprevenida em que se vai para a cama, podem fazer história. O de Getúlio protagoniza um caso extremo, mas há outros. Ainda recentemente, tivemos, no episódio da deposição do presidente de Honduras, Manuel Zelaya, o detalhe capital de que ele foi retirado do palácio ainda de pijama, assim arrastado até o aeroporto e assim depositado na vizinha Costa Rica. Não foi a primeira vez que isso ocorreu, na crônica dos golpes na América Latina. No Peru, em 1968, o presidente Belaúnde Terry também foi arrancado do palácio de pijama pelos golpistas do general Velasco Alvarado e assim conduzido ao exílio.

De pijama! O detalhe potencializa a feição selvagem de que se reveste o golpe, traiçoeira como emboscada. As vítimas são surpreendidas durante a noite, na hora sagrada do repouso e do silêncio. Se fosse só isso já seria grave, mas a particularidade de não lhes darem tempo de trocar de roupa acrescenta à traição a vontade de humilhar. A intenção é exibi-las na fragilidade da roupa íntima, só a um grau de distância da cueca, e a dois graus da nudez. Se as circunstâncias foram semelhantes, nos casos de Belaúnde e de Zelaya, a sequência os diferenciou. Belaúnde, um homem pacato, assimilou a deposição humilhante e conformou-se ao exílio. Zelaya, mais combativo, e sobretudo favorecido por uma era em que os golpes não são mais aceitos como um fato da vida, como nos tempos de Belaúnde, acrescentou o pijama às suas armas de luta. Tanto o mencionou, para dramatizar o seu caso, que os inimigos passaram a contra-atacar com a versão de que o pijama teria sido encomendado na Costa Rica.

O pijama de Getúlio, tão convencional, como é próprio dos pijamas, e tão inerte, como eles costumam ser quando não têm o dono dentro, é ainda assim, para o Museu da República, uma atração central como é a Mona Lisa no Museu do Louvre. Recordem-se os acontecimentos daquele agosto de 55 anos atrás. O presidente estava acuado por uma oposição que lhe exigia a renúncia. Uma reunião ministerial para avaliar a situação começa na noite do dia 23 e vara a madrugada, até quase raiar o dia 24. Getúlio decide que tirará uma licença do cargo. Sobe então aos aposentos íntimos do palácio, veste o pijama, deita-se na cama. Dorme um pouco, se é que conseguiu dormir, e recebe a notícia de que os militares não aceitarão a licença – querem a renúncia. Sai então do quarto, vai ao gabinete de trabalho e ao voltar um funcionário nota que carrega algo volumoso por baixo do paletó do pijama. Às 8h30, o tiro ressoa no palácio.

Foi sua obra-prima. No plano das ações de governo, Getúlio é questão eternamente em aberto. Seu período foi de industrialização e de desenvolvimento, mas foi também, na fase ditatorial, da censura, da tortura e dos assassinatos. Realização realmente incontroversa, porque acuou os inimigos, deu sobrevivência a seu grupo e inflou a biografia que legou à história, foi o suicídio. E o suicídio resultou ainda mais bem-acabado porque cometido de pijama. Ele poderia ter vestido de volta o terno que usara até pouco antes. Poderia, se optasse por um aparato teatral, ter se metido num smoking, ou ter se enlaçado na faixa presidencial. Ficou no pijama mesmo. Com isso, ressaltou sua situação indefesa, diante da ferocidade do inimigo, e, de quebra, aplicou a pincelada final à cultivada imagem de homem simples, político despojado e presidente amigo dos pobres.

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