quarta-feira, agosto 19, 2009

ROBERTO DAMATTA

Obragem de coluna


O Globo - 19/08/2009

Graças a Fernando Collor, os jornais foram forçados a retornar ao português castiço no intuito explicar às pessoas sem biografia — o cidadão comum que não tem dinheiro, sofisticação ou cargo elevado — o sentido do insulto (citado acima) que o fero aliado do governo Lula (não tanto do PT, eu ainda presumo), dirigiu ao jornalista da revista “Veja” Roberto Pompeu de Toledo.


Obrar, na língua com a qual nos comunicamos e, sem saber, construímos o mundo, é o resultado de uma ação ou trabalho. Os dicionários registram vários sentidos para o ato de agir sobre nós mesmos, as pessoas e os objetos que nos cercam enquanto seres vivos; pois os mortos estão mortos precisamente porque deixam de obrar e, se continuam realizando alguma coisa, é por meio simbólico: através da obra e da memória que deixaram.

A “obra” é o resultado de nossas vidas: de tudo o que fazemos (inclusive do não fazer que é um importantíssimo fazer) enquanto sujeitos dotados de vontade, autonomia e discernimento — todos relativos. Mas, além destes significados abrangentes e contemporâneos, obrar significa também defecar, sujar, borrar e cagar. Ou seja, na língua portuguesa, há uma relação intestina entre obrar como produzir, trabalhar, operar, agir, surtir efeito, causar e realizar; e o aparentemente humilde (mas imperativo e velho) ato de cagar.

O primeiro, dependendo da obragem, distingue; o segundo, compassivamente, por meio de um corpo que não deixa mentir, iguala o trivial imbecil ao sábio mais sofisticado.

Graças ao senador e ex-presidente Collor, temos na magnífica paisagem de nossa vida politica contemporânea essa edificante redescoberta do “obrar” como “cagar”.

Quer dizer, ao lado deste belo panorama que vai do apoio fraterno a caudilhos, passa pela falsificação grosseira de biografias, chega aos decretos secretos de um parlamento parlapatão que legisla secretamente em causa própria; passa por agressões verbais que desonram prostíbulos; reafirmam um narcisismo digno dos maiores neuróticos de Freud; e atingem seu ponto culminante no eterno retorno à tranquilidade do Senado como um velho clube campestre ou como um incrível jogo de futebol onde o gol contra é aplaudido porque nossos representantes odeiam as regra que valem para todos, há também a equação entre bosta e obra.

Ouvi de velhos nordestinos, nortistas e de sertanejos do esse obrar como sinônimo de defecar. No atual momento, penso que não há maior contribuição para a democracia liberal e para a autoestima cidadã dos obreiros comuns, gente de obra regular e normal, pagadores compulsórios e honestos dos impostos sem biografia ou dona das 400 gravatas e dos 200 ternos comprados com o nosso dinheiro, ou que têm financiamento da Petrobras e quejandos, do que ser forçado a redescobrir que — grosso modo — obrar é mesmo a maior característica da elite politica nacional.

Nada mais gratificante do que desvendar a relação culta, intestina e profunda entre o ato de defecar e o de produzir, esse verbo inscrito nos anais da modernidade. Estilo de vida baseado justamente no obrar, agir, fabricar, executar e urdir, sobretudo quando isso nos chega por meio de um ataque a um jornalista probo e é dito pela boca de um dos membros de uma ilustre galeria de “supremos magistrados da nação”, de ex-mandatários da administração federal; de supostos orientadores da moralidade do país como ex-presidentes da República. Super-pessoas que, pelo cargo exclusivo e singular que ocuparam, merecem respeito e admiração.

Agora, porém, não temos mais nenhuma desculpa. Sabemos bem como a nossa língua realiza o elo entre a merda e a obra.

Caberia aos weberianos (se é que ainda exista quem leia Weber no Brasil), aprofundar esse elo entre obrar e defecar contido nesse verbo que vem (como afirma o Aurélio) do operare latino; e (como indica o Houaiss) foi dicionarizado no século XIII. Haveria um laço profundo entre bostar e fabricar; e o velho e conhecido par trabalho e castigo? Poder-se-ia arguir que o fazer latrinal significa que ainda não realizamos a transição para a tal modernidade que tanto buscamos, como nos ensina com agressiva propriedade e arguta sabedoria o expresidente Collor? Se o moderno é construído pelo obrar como um incessante fabricar; bem como pelo trabalho como chamado e vocação e não como castigo (que seria coisa para gente comum e escravos); como ficamos quando somos forçados a descobrir que na nossa construção de mundo a merda tem tudo a ver com o fabricar e o trabalho está ligado ao tripalium (um instrumento de tortura) e assim ao castigo condizente com a escravidão que mal acabamos de acabar? Eis aí, em péssima sociologia, algo que faz parte de nossa visão de mundo que o senador Collor contribuiu para esclarecer, do mesmo modo que dois dos seus colegas, nesses tempos ricos de vocabulário e teórica politica de lavatório, lembraram.

Refiro-me ao coronel (de merda) e ao cangaceiro (de terceira) que — quem ainda não tinha certeza mais absoluta — permeiam, muito mais do que povoam, o sistema político nacional.

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