sábado, agosto 29, 2009

J. R. GUZZO

REVISTA VEJA
J.R. Guzzo

Baralho falso

"O que poderia haver de mais avançado em matéria de falsificação do que sustentar, como fazem os mestres de doutrina do PT, que são de direita todos os que discordam do governo Lula e de esquerda todos os que são a favor?"

Os professores das escolas públicas e particulares brasileiras provavelmente continuam ensinando nas salas de aula que, em política, as coisas se dividem em direita e esquerda; boa parte deles, pela lei das probabilidades, deve explicar que a direita é geralmente do mal e a esquerda é geralmente do bem. A esperança é que a maioria dos alunos não preste muita atenção às aulas em que ouve isso, ou esqueça logo o que ouviu, como esquece para que serve a bissetriz ou quem foi o regente Feijó. O problema maior não está em dizer, sem demonstrar com fatos, que esquerda é melhor que direita – como também não haveria grande perda se fosse dito o contrário. Há muito tempo esse tema virou questão de fé, e aí cada um acredita no que quer. Ruim, mesmo, é manter em circulação duas palavras que, no Brasil de hoje, perderam qualquer utilidade para diferenciar comportamentos, convicções e pessoas na vida política real. Só servem, na verdade, para fazer exatamente o oposto – uma mistura grossa na qual vai ficando cada vez mais difícil saber quem realmente é quem, e, sobretudo, quem está querendo o quê. Esse mundo de confusão, sem forma, sem substância e sem lógica, é o ambiente ideal para montar uma mesa de jogo em que são falsos o baralho, as fichas e tudo o que está em cima, embaixo ou em volta dela.

O que poderia haver de mais avançado em matéria de falsificação, por exemplo, do que sustentar, como fazem os mestres de doutrina do PT, que são de direita todos os que discordam do governo Lula e de esquerda todos os que são a favor? O resultado prático dessa maneira de separar os lados na política brasileira é a criação de um tumulto mental em modo extremo, no qual não se entende rigorosamente nada. Cada caso, aí, é mais esquisito que o outro. O governador José Serra, que foi presidente da UNE, teve de fugir da polícia no golpe militar de 1964 e ficou anos exilado, é o principal nome da oposição para disputar as eleições presidenciais de 2010 contra a candidatura do governo; é apontado pelo PT, por isso, como o grande líder da "direita" brasileira. O presidente do Senado, José Sarney, foi um dos principais servidores do regime militar, esse mesmo que queria colocar Serra no xadrez; hoje está a favor do governo Lula e é defendido até a morte pelo PT, como um herói daquilo que o partido descreve como sendo o campo progressista, popular e de "esquerda". Qual o nexo de uma coisa dessas? Pela mesma visão, o deputado Fernando Gabeira, que quando jovem fez tudo o que a esquerda mais radical podia fazer, e hoje é um opositor aberto da ladroagem no governo Lula, é excomungado como homem de "direita". Já o senador Romeu Tuma, que fez carreira durante a ditadura como delegado do Dops e andava atrás, justamente, de subversivos como Gabeira, hoje é um dos destaques da "base aliada" e se vê premiado pelo PT como participante ativo do "projeto de esquerda" neste país. A senadora Marina Silva, que até outro dia estava para ser canonizada pelo governo, tornou-se suspeita de ajudar a "aliança conservadora" no dia seguinte ao seu rompimento com o PT; é uma questão de tempo até ser enfiada sem maior cerimônia no balaio geral da "direita". O deputado Paulo Maluf, que o PT sempre tratou como uma espécie de King Kong do direitismo nacional, foi promovido, pelos serviços que fornece ao governo, a associado emérito das forças de "esquerda". Fica assim, então: Serra, Gabeira e Marina, entre dezenas de nomes semelhantes, estão na direita; Sarney, Tuma e Maluf, entre outros tantos, estão na esquerda. É nisso que veio dar, no Brasil atual, a distinção entre ideologias.

Quando se toma, de caso pensado, o caminho da mentira para fazer política, qualquer coisa pode acontecer. Está acontecendo neste momento na Receita Federal, onde a demissão da secretária Lina Vieira e de dois de seus assessores diretos, seguida pela entrega de sessenta cargos de chefia por seus ocupantes, virou uma briga de arquibancada como fazia muito tempo não se via numa repartição do serviço público. Lina e sua equipe, no evangelho segundo o PT, seriam esquerda pura: diziam dar prioridade à fiscalização sobre "grandes empresas" e tinham a seu lado o sindicato da categoria. Mas a secretária se estranhou com o governo em geral e com a ministra Dilma Rousseff em particular; acabou posta para fora, foi chamada de "essa secretária" pelo presidente da República e já está a caminho de entrar na lista negra dos que colaboram "objetivamente" com a estratégia direitista de Serra, Gabeira, Marina etc.

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