sexta-feira, julho 24, 2009

COISAS DA POLÍTICA

A comédia sangrenta

Mauro Santayana

JORNAL DO BRASIL - 24/07/09

Se, na análise da Escola de Frankfurt, e de seus pensadores maiores, como Adorno e Horkheimer, o nazismo expressou a perfeita perversão do Iluminismo, a Itália política, a partir da Marcha sobre Roma, pode ser vista como a deterioração do Renascimento. A unificação da Península, em 1860, foi considerada O Ressurgimento, mas o processo não avançou da forma esperada.

A Itália, dividida em seus principados, estados vaticanos, repúblicas, ducados, foi sempre grande, na memória do Império e na arquitetura política. Se houve tiranos na Península, e se a Igreja se corrompeu, sob o governo de alguns papas devassos, as artes e o humanismo encontraram na Itália do Renascimento momentos inigualáveis, com seus pintores, escultores, poetas, filósofos. Ninguém, em qualquer outro lugar, naquele tempo, pôde pensar o Estado como o pensaram Maquiavel, Dante, Guicciardini, Campanella e outros.

A derrota de Mussolini, o fim da guerra e a instauração do regime republicano, em 1948, trouxeram outra esperança de reafirmação histórica do povo italiano. Mas, como houvesse a possibilidade de que os comunistas – ali identificados, desde Gramsci, com o humanismo nacional – ganhassem as eleições com Togliatti, os Estados Unidos despejaram sobre a Itália todos os seus recursos. Todos os recursos ostensivos, e os clandestinos, ao patrocinar a aliança dos democratas cristãos de De Gasperi – sob as bênçãos e a força do Vaticano – com a máfia siciliana, e assegurar o controle do país por Washington.

As circunstâncias que conduziriam esse processo começaram a reunir-se em fevereiro de 1942, quando o luxuoso transatlântico Normandie pegou fogo no porto de Nova York. Os Estados Unidos haviam entrado na guerra contra o Eixo em dezembro, depois do ataque a Pearl Harbour. O governo apreendera o navio, que pertencia à França, então ocupada pelos alemães. Sob suspeita de que houvera sabotagem, a Marinha dos Estados Unidos buscou a colaboração do mais famoso gangster ítalo-americano, Lucky Luciano, condenado a 30 anos de prisão. Com as facilidades que lhe foram concedidas, o bandido mobilizou seus agentes nos sindicatos de estivadores, que exerceram vigilância rigorosa na orla. Não houve qualquer sabotagem nos portos americanos durante a guerra. O mesmo Luciano, também cooptado pelos americanos, mobilizou os remanescentes da máfia, que ajudaram o desembarque aliado na Sicília, no ano seguinte. Mussolini havia desbaratado a máfia na Itália, e seus capi se transferiram para os Estados Unidos. Sob a proteção norte-americana, a organização ressurgiu para ajudar a impedir que a Itália entrasse para a órbita soviética.

Foi assim que, em 1946, libertado pelo governo de Truman, Luciano voltou à Itália e mobilizou-a contra os comunistas. Na articulação entre o Vaticano, a máfia, os democratas cristãos e os norte-americanos, um jovem político, Giulio Andredotti, secretário de De Gasperi – foi a peça mais importante. Os democratas cristãos tiveram 48% dos votos, dominaram a Assembleia Constituinte e o primeiro governo constitucional da Itália com De Gasperi, até sua derrota parlamentar em 1953.

Essa aliança, formada durante a guerra e consolidada no fim do conflito, continua governando a Itália até nossos dias, pouco importa que partido se encontre no poder. Por isso são efêmeros, ali, os governos de esquerda, quando não se corrompem, como os socialistas de Craxi. A direita, antes dissimulada na democracia cristã, é agora liderada por Sílvio Berlusconi.

No fim dos anos 80 e início dos 90, surgiu, entre os promotores e juízes italianos, o movimento Mãos Limpas, para combater a corrupção no governo. Dois juízes se destacaram nessa atividade, Giovanni Falcone e Paolo Bersollini, assassinados em Palermo, pela máfia, com o intervalo de poucos dias. O responsável direto pelos atentados foi Toto Riina, o grande chefe da família de Corleone. Condenado à prisão perpétua, revelou a seu advogado, no fim da semana passada, que a morte dos juízes foi um "crime de Estado", do qual participaram agentes secretos do governo. Bersollini e Falcone haviam descoberto ligação orgânica entre a máfia de Palermo e grandes homens de negócios da direita em Milão – entre eles Sílvio Berlusconi, o poderoso barão da mídia. Toto disse mais: que o dinheiro para financiar essas operações viera dos cofres do Vaticano.

Berlusconi é mais do que o conquistador de prostitutas. É um dos comediantes nessa farsa que tem infelicitado o grande povo italiano.

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