segunda-feira, junho 01, 2009

MARCELO DE PAIVA ABREU

Autópsia de outro fracasso


O Estado de S. Paulo - 01/06/2009
 
A ação diplomática do Brasil nos últimos tempos pode ser criticada com base em diversos critérios: excessiva complacência com vizinhos atados a populismos variados, que vão do "bolivarianismo" ao neoperonismo; ênfase desmedida em protagonismo, às expensas de substância, na seleção de parceiros "estratégicos"; avaliações descoladas da realidade sobre as possibilidades da política externa. Tais críticas são feitas tendo como pano de fundo o consenso de que o serviço exterior do Brasil é competente e tem tido sucesso em fazer ouvir a voz do País. Acontecimentos recentes sugerem que tais premissas podem estar comprometidas.

Os últimos meses foram marcados por controvérsias sobre postulações internacionais envolvendo interesses brasileiros. Em jogo estavam as escolhas do diretor-geral da Unesco, da sede dos Jogos Olímpicos de 2016 - o Rio de Janeiro compete com Chicago, Madri e Tóquio - e, surpreendentemente, de integrantes do Órgão Permanente de Apelação da Organização Mundial do Comércio (OMC). O destaque, neste último caso, decorreu de o nome indicado ser o de Ellen Gracie, ministra e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). O cargo em si, embora disputado entre especialistas, é de dedicação parcial (até 100 dias por ano) e não tem o mesmo prestígio da direção de organismos multilaterais.

A estratégia do Itamaraty ficou exposta, porque o ministro das Relações Exteriores deixou claro que não haveria apoio oficial à candidatura de brasileiros à direção da Unesco, inclusive de funcionário do órgão com chances efetivas de ser escolhido. O Brasil, em nome da aproximação política aos países árabes, estava comprometido com a candidatura egípcia e concentraria esforços na defesa de outras candidaturas brasileiras: a da cidade do Rio e a de Ellen Gracie. Esse apoio foi mantido mesmo após ter sido constatado que o candidato egípcio, apoiado pelo Brasil, notabilizou-se por comentários antissemitas.

O fracasso em relação à candidatura da ministra Gracie ao Órgão Permanente de Apelação da OMC deixa ainda mais exposta tal estratégia. E, no entanto, as dificuldades quanto à candidatura eram óbvias. Foram minimizadas pelo governo, que, movido por interesses relacionados à política interna, estimulou a avaliação de que o cargo na OMC era mais importante do que de fato é. Diversos fatores indicavam ser improvável a escolha da ministra. Luiz Olavo Baptista foi um dos sete membros do Órgão de Apelação durante quase oito anos e a OMC tem 153 membros. Em qualquer cenário haveria dificuldade em fazer prosperar a candidatura brasileira, em face de pressões por rotatividade na representação dos membros.

A ministra Gracie tem currículo distinto, postura de grande dignidade e desfruta de prestígio como a primeira mulher a presidir o STF. Mas a sua candidatura não atende aos requisitos do artigo 17.3 do Entendimento relativo às normas e procedimentos sobre solução de controvérsias na OMC: "O Órgão de Apelação será composto de pessoas de reconhecida competência, com experiência comprovada em Direito, comércio internacional e nos assuntos tratados pelos acordos abrangidos em geral."

Ventilou-se que o ministro Celso Amorim protestou em conversa "dura" com Pascal Lamy, diretor da OMC. Melhor justificativa teria tido Lamy para ter conversa de tal teor, pois o Brasil levou à OMC uma candidatura para resolver assunto de política interna. O ministro deveria reservar seus momentos de dureza para conter incontinências de vizinhos como Lugo ou Chávez.

O Brasil, desde a criação do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (Gatt, na sigla em inglês), sempre teve prestígio na instituição, além do que poderia ser explicado por sua participação no comércio mundial. O embaixador Álvares Maciel teve atuação destacada na Rodada Tóquio e Paulo Nogueira Batista foi influente na Rodada Uruguai. Embaixadores no Gatt e na OMC - Ricupero, Lafer, Lampreia, Amorim - foram depois ministros de Estado. No sistema de solução de controvérsias, o Brasil tem tido relevância em "panels" decisivos. O Brasil, no âmbito da OMC, tem participado de reuniões em formatos G-4 e G-7 com os protagonistas desenvolvidos. É uma lástima que tal reputação de competência e operosidade seja comprometida por avaliações incorretas sobre as reais chances do País na indicação de brasileiros para ocupar posições de destaque na organização.

O episódio Ellen Gracie é o último de uma longa lista de tropeços. Nos últimos anos o Brasil vem acumulando espetacular sequência de insucessos em postulações para ocupar posições em organismos multilaterais, muitas delas com engajamento do Itamaraty. Candidatos brasileiros foram derrotados na escolha de dirigentes da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), da Organização Mundial do Comércio, da União Internacional de Telecomunicações (UIT), da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Wipo, na sigla em inglês). Esses processos quase sempre explicitaram posições divergentes do Brasil com seus vizinhos latino-americanos e até mesmo do Mercosul.

O que explicaria esse retrospecto de time de várzea? A hipótese caridosa é que a deterioração na capacidade analítica da diplomacia brasileira se deva à postura politizada assumida pelo Itamaraty desde 2003. De qualquer forma, é triste ver o País passar vergonha por conta desses erros de avaliação. Esperemos que lições relevantes sejam tiradas. Podem ser úteis na postulação do Brasil no quadro da reforma da ONU. Senão, a vergonha poderá ser ainda maior.

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