domingo, maio 03, 2009

JOÃO UBALDO RIBEIRO

Coinchos subversivos

O GLOBO 03/05/09

Devo esclarecer que também não conhecia a palavra ´coincho´ ou, se a conhecia, tinha esquecido. Fui espiar ´vozes de animais´ no Houaiss e peguei-a lá. Refere-se ao som emitido pelo - como direi? - aparelho fonador do porco. Para nós, humanos, o coincho tem uma capacidade de comunicação muito limitada, mas vai ver que isso não passa de antropocentrismo preconcei-tuoso e a porcalidade terá, quem sabe, até mesmo seus oradores. A esta altura grandemente ofendidos com a nova nódoa sobre sua imagem, que, por obra de lamentáveis e injustos mal-entendidos, nunca foi das melhores, haverão de estar coinchando protestos revoltados, em pocilgas pelo mundo afora. Os por-cos, milenarmente transformados em pernis, presuntos e linguiças, devem a-char é pouco essa gripe aí, como resposta aos muitos gravames que lhes infli-gimos. Mas não serão escutados, porquanto - reza um dos ditados em que acho que estou ficando viciado -, se o lobo compreendesse o cordeiro, mor-reria de fome. Pois é, não entendemos coinchos e não queremos entender. E assistimos impassíveis até a genocídios suínos, como acaba de acontecer num país cujo nome agora esqueci, onde, ao que parece, não sobrou viva nem a Pe-túnia do Gaguinho. É assim a ingrata existência, não se pode fazer nada.

Os porcos, informam especialistas e noticiaristas, não têm nada a ver com a disseminação da gripe suína, que está sendo transmitida de pessoa a pessoa. Só passaram o vírus para os humanos porque estes os confinam em grandes criatórios, em que trabalha muita gente. Bem que suspeito que as lide-ranças porcais gostariam que não fosse assim, mas ressaltou-se também que a gripe não é contraída através do consumo de produtos suínos. Ou seja, o porco continua a levar a fama, mas quem transmite a gripe somos nós (lá eles, t´esconjuro, batamos na madeira). Outra vez nenhuma novidade, tudo dentro dos padrões da humana e da suína existência.

Mas Itaparica está aí mesmo, para descortinar novos horizontes e des-bravar novos caminhos. Eu próprio, que devia estar acostumado, me surpreen-do. Na quinta-feira passada, o bar de Espanha foi mais uma vez palco de um debate acirrado e fecundo, a partir de uma iniciativa de Zecamunista, que che-gou de Itabuna cheio da grana que faturou da burguesia decadente em altas rodas de pôquer e carregado de jornais e revistas de todos os tipos e origens.

- Espanha, meu bom taverneiro - disse ele -, bote aí a do Zarolho.

Silêncio pesado no ambiente. A do Zarolho é uma raríssima uca de San-to Amaro, assim alcunhada porque uma vez um padre cujo nome não pega bem citar provou dois dedos e ficou vesgo irreversivelmente, o mesmo ocor-rendo depois a vários desavisados. O próprio Zecamunista só a encara em oca-siões muito especiais, de maneira que a expectativa se justificava plenamente.

Depois de um silêncio insuportável, ele finalmente revelou o plano que acabara de conceber. A situação dos deputados e senadores brasileiros reque-ria um corretivo severo, muito mais severo do que a embromação ora em cur-so. Mister se fazia, disse ele com a voz roufenha própria dos agitadores, partir para uma ação revolucionária radical. E ele já sabia o que ia fazer, precisava de voluntários heroicos para uma expedição a Brasília com o objetivo de soltar duas varas de porcos endefluxados, uma na Câmara, outra no Senado. Pronto, resolvido o problema, o porco sempre foi um animal de grande utilidade e a-gora mostraria de vez o seu valor, salvando a pátria.

A adesão foi imediata e acho que já amanhã a força expedicionária da ilha estaria desembarcando em Brasília (o dinheiro que Zecamunista ganha no pôquer é todo destinado à Causa, com a modesta exceção do que ele gasta com as duas raparigas que mantém discretamente no Baiacu), se não fosse ou-tra vez a intervenção das forças conservadoras, representadas por Jacob Bran-co, que abriu com uns versos sobre grandes e patrióticos porcos na história da ilha (houve vários porcos ilustres em nossa história, Jacob sabe é de coisa) e disse que o porco itaparicano jamais serviria de arma terrorista.

- Além disso - bradou Jacob, gesticulando como aprendeu no curso de oratória de Ary de Maninha -, não vamos fugir novamente da realidade. E a realidade, meus nobres amigos, é que, se alguém soltasse uns porcos no Congresso, o que ia acontecer era um deputado ou senador qualquer aproveitar para montar um açougue. Ou então criar o Dia Nacional do Lombinho e usar os porcos para o churrasco de comemoração. Atenção na realidade!

Sim, havia esses inelutáveis aspectos a considerar. Por uma questão de coerência ideológica, Zecamunista concordou com a alegação de terrorismo e, por uma questão de Realpolitik, também concordou com a hipótese do chur-rasco. Mas alguma coisa tinha que ser feita, a inspiração dada pelos porcos não podia ser desprezada, insistiu ele. Tanto Itaparica quanto os porcos humi-lhados e ofendidos não podiam deixar a situação passar em brancas nuvens.

E assim, na penumbra da madrugada e com as portas semicerradas, os conspiradores chegaram a um acordo. E, vou dizer a vocês, eu não queria estar na pele de deputados, senadores e governantes em geral, a esta altura. Não vou bancar o Silvério dos Reis, contando qual é o esquema, mas adianto o que não me foi vedado. Que atentem os poderosos doravante para cada salsicha, cada linguiça, cada fatia de presunto, cada costeleta, porque nelas alguma coisa os afetará poderosamente - e não será nem gripe nem intoxicação alimentar. Cuidado também com pacotes do Correio. Um deles, posso revelar, será rece-bido por todos os parlamentares e conterá um elegante pincelzinho de pelo de rabo de porco embrulhado para presente, com os dizeres ´do porco se aprovei-ta até o rabo e de você nem isso´. Vai ser terrível.

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