terça-feira, maio 26, 2009

ARNALDO JABOR


Tudo era pecado nos anos 50

O GLOBO - 26/05/09

Há dez anos, escrevia sobre o quase impeachment, nos Estados Unidos, de Bill Clinton, perseguido pela imprensa conservadora e pela boneca enrustida do procurador Ken Starr (lembram?) e traduzi a palavra "bimbo", que a imprensa usava a propósito da Monica Lewinski (lembram também?) como sendo uma gíria para "pênis". Errei. "Bimbo" é mulher-galinha, perua-piranha, algo assim.

No entanto, "bimbo" me evocou o saudoso pipoqueiro Bené, das ruas de minha infância. Meu artigo acabou sendo sobre o Bené. E hoje, ele virou um dos personagens principais do filme que faço no Rio.

Bené participou ativamente de minha formação sexual, quando encostávamos em sua carrocinha para ouvir, entre estalidos de pipoca quente, as artes nobres de suas "bimbadas" famosas. 
O pipoqueiro Bené era olhado por nós com respeito fascinado e seu bigodinho carioca, raso e brejeiro, parecia um "brevet" de dom Juan ali da Urca (quantos se lembram do grande Bené, orgulhoso, baixinho, cabelo com "glostora", um dente de ouro, papando as empregadas e até madames solitárias que se esfregavam na carrocinha quente, divididas na eterna dúvida: "doce ou salgada?").

Bené nos contava as histórias mais profundas sobre sexo e amor, que bebíamos encantados, já que nossos pais e mães "art deco" jamais iam muito além da cegonha. Nesse mister, Bené, o pipoqueiro, era ajudado por Alfredinho, o aleijado. Alfredo tinha as duas perninhas penduradas entre as muletas, mas ostentava um tórax invejável, devido ao exercício de se mover. E os dois, como uma dupla ensaiada, nos iniciavam nos mistérios da carne, se bem que Alfredinho era menos confiável, pois se gabava de aventuras inverossímeis que, dada a sua condição de deficiente físico, nos pareciam fantasias compensatórias para a sua infelicidade.

Bené, não. Esse, enquanto enchia os saquinhos de pipoca, dentro de seu aventalzinho branco, nos ensinava, por exemplo, que a masturbação, se executada com a mão debaixo da perna, era melhor, pois fazia-a dormente e aumentava o prazer, parecendo uma carícia batida pela mão de outrem, de preferência a bela mãe de algum amigo, ou da Terezinha de 15 anos que Bené ambicionava, embora soubéssemos que era em vão, por ser a menina de outra classe social e loura, jamais para seu bico. E, muito menos, para o bico de Alfredo, o aleijadinho, este, sim, se esmerando em narrar aventuras rocambolescas, como a da mulher do major da Aeronáutica que ele afirmava ter "bimbado", se balançando nas muletinhas, em pé, debaixo da escada que serpeava sob o "flamboyant" coberto de cigarras.

Pelas mãos desses mestres, fui formado, aprendendo coisas fundamentais, como a importância da vaselina ou do cuspe para imaginadas ações de sodomia em menininhas ou a necessidade de termos olhos de lince para distinguir quem era veado ou não, o medo máximo que nos rondava e cuja simples menção como xingamento numa pelada de rua nos obrigava a lutas terríveis, entre arranhões e "gravatas". Se veados fôramos - eles nos advertiam -, poderíamos acabar como o mendigo-bicha "Amélia", andando com saco nas costas e sujo, que, segundo Bené, tinha dado mijo para a mãe beber no leito de morte, o que lhe valera o castigo de Deus de ser mendigo, catando papel, revirando os olhos com arrebiques femininos pelas sarjetas.

Bené e Alfredinho nos avisavam também dos perigos de uma estirpe de meliantes, os tremendos "bocas de fogo", como eram chamados os comedores de meninos bobos, dos quais o mais temido era o Chita, ex-pracinha bissexual neurótico da Segunda Guerra, que "dava" nos fundos de garagem ou nas pedras da amurada, se bem que - advertia Bené - "comeu, tem de dar e olha que o Chita já comeu fulano e sicrano".

Pela sábia supervisão de Alfredinho, vimos pela primeira vez a fascinante revista de sacanagem "Saúde e Nudismo", toda em monocromatismo azulado, que nos arregalava os olhos diante de mulheres suecas fora de foco, deitadas de lado em rochedos da Escandinávia. 
O sexo que aprendíamos ali não tinha essa invejável liberdade dos garotos de hoje, o sexo era um corredor secreto, um filme de suspense, uma espécie de crime feito em fundos de quintal. Foi Bené que me explicou a camisa-de-Vênus que eu achara no banheiro de meus pais, bola de encher leitosa, prova do pecado de minha mãe, que me valeu noites de insônia e rancor de menino traído pela mãe.

Alfredinho, mais culto que Bené, nos decifrou as figuras do livro de medicina que um amigo roubou do pai e levou para a furtiva luz amarela do pipoqueiro, na noite da Urca. Ali, na luz do carbureto, víamos os corpos brancos dos mortos nus, da mulher de seios arrancados, do "veado" que se matou com o fio da tomada no ânus carbonizado e, supremo trauma infantil, a foto do hermafrodita, com a tarja negra sobre os olhos, sorrindo tristemente com seu duplo sexo pendurado.

E foi ali, na luz febril, que eu fui estimulado a tentar minha primeira conquista, a de Angelita, menina pálida, filha do espanhol da padaria, que me fitava sempre com olheiras negras, segurando a saiazinha suja. Estimulado por Alfredinho e Bené, tomei coragem e, numa tarde, dentro do sótão de sua casa, entre baús e com um velho manequim nos olhando, trocamos cuspe dentro da boca um do outro e pude tocá-la sob a calcinha, cheirando depois os dedos que, até hoje, me trazem de volta um olor tênue e úmido, visgo de seiva de planta e que (eu senti) era o primeiro sinal de uma viagem pelo amor e carne do mundo - doce ou salgado - que me esperava no tempo.

Para Bené e Alfredinho, claro, falei de grandes gestos viris, e nada disse sobre as lágrimas de Angelita e de meu pavor do manequim me olhando, nem da fuga pela escada poeirenta sob a voz do espanhol, nem que Angelita nunca mais me fitou com seus olhos tristes. Usei bravamente apenas os palavrões que aprendera com eles, sentindo já em meu lábio o tremor de um bigodinho viril, como o do Bené.

Entre o crime e a medicina, éramos formados para o amor nos anos 50.

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