terça-feira, maio 19, 2009

ARNALDO JABOR

O cinema novo nasceu num botequim

O GLOBO - 19/05/09

Eu era cineasta e virei jornalista. Parei, há dezessete anos. Continuo jornalista, mas agora também estou filmando. Meus artigos serão tocados por esta reprise profissional. O cinema no Brasil mudou muito; as condições eram terríveis, as equipes despreparadas, a fome rondava o espetáculo e variávamos entre dois sentimentos básicos: ansiedade e frustração "será que vai sair o dinheiro?" ou "os exibidores acham que o filme é um "abacaxi". Agora, melhorou muito, com jovens eficientíssimos, novas tecnologias.

Mesmo assim, lembro-me do cinema nos anos sessenta, quando comecei. E ouso dizer: o Cinema Novo nasceu num botequim.

Isso mesmo. Lá no bar da Líder, na Rua Álvaro Ramos, em Botafogo, foram sonhados dezenas de filmes. O Bar da Líder não era um bar; era um botequim tímido e pobre em frente ao Laboratório Líder, onde revelávamos e copiávamos nossos filmes. Tinha dois garçonzinhos; um espanhol quase anão e um cearense cafuzo, que se esbugalhavam diante de nossas discussões infinitas sobre arte.

Hoje o bar (não vou lá há muito tempo) já virou uma "acrílica" lanchonete. Mas, desse tempo mágico, ficaram as lembranças: as moscas no bico dos açucareiros, as cadeirinhas de madeira, os tampos de mármore, os chopes, os sanduíches de pernil, os ovos cozidos cor-de-rosa, a lingüiça frita, o cafezinho em pé. E era ali, no meio de insignificantes objetos brasileiros, era ali que traçávamos os planos para conquistar o mundo. Conspirávamos contra o "campo e contracampo", contra os travellings desnecessários, contra o happy end, contra a fórmula narrativa do cinema americano e, por uma estranha ilação, achávamos que, se a língua de nossos filmes fosse diferente da língua oficial, estaríamos contribuindo para a salvação política do país. Claro, nossa câmera era um fuzil que, em vez de mandar balas, recolhia imagens do país para "libertar" os espectadores. Achávamos que, mostrando a "realidade" brasileira, misteriosamente, contribuíamos para mudá-la.

Não sabíamos ainda que, assim como existia um modo de produção oficial, havia também uma "realidade oficial" em cores e efeitos especiais que resistiria ao ataque guerrilheiro das metáforas pobres.

A estética da fome de Glauber, transformava nossa fome em nossa riqueza. Por isso, nossos filmes eram metáforas deles mesmos; na sua precariedade morava um retrato do Brasil ao avesso, a boa e velha realidade óbvia, sem efeitos sofisticados. Daí, nossa incrível esperança naqueles anos utópicos, daí nosso desprezo por dinheiro, pela caretice e pelo sucesso burguês. Iamos aos festivais europeus como soldados, para xingar os críticos franceses, atacar o "velho mundo decadente", que, por sinal, se encantou conosco através dos "Cahiers du Cinéma" e do "Positif" e nos pôs nas nuvens, culpados diante de nossa fulgurante miséria.

Não sabíamos que seria tão renitente a resistência da língua oficial. Não sabíamos ainda da barreira que fariam contra esta cândida exposição de verdades e injustiças. Não sabíamos ainda da bruta violência de Hollywood, com seu embargo a nossos filmes, como havia o embargo contra Fidel. Nós éramos os românticos de Cuba.

Nossas câmeras eram pobres, nossos filmes, preto-e-branco, nosso som, precário e, no entanto, a fome de mostrar o olho do boi morto, o mandacaru pobre, as mãos brutas dos camponeses, a cara boçal da classe média, fazia-nos desprezar até o aperfeiçoamento técnico, numa espécie de mímica do cotidiano proletário. Transformamos nossas misérias em teoria, numa arte povera, em que a precariedade seria mais profunda que um "reacionário" progresso audiovisual. Lembro-me que o Glauber era contra o Nagra, o gravador suíço que surgiu nos 60.

"A gente não pode se alienar tecnologicamente", bradava o doce baiano no seu radicalismo, ali, de chinelo, dentro do bar da Líder, sob o olhar perplexo do espanholzinho que servia chope. E nisto havia até uma ingênua verdade, pois o cinema moderno perdeu a magia de antes, porque quanto mais se aperfeiçoam as maneiras de penetrar na "realidade", mais distante ela fica.

Quanto mais se fazem descobertas, mais fundo é o túnel do mistério; a máquina do mundo, quanto mais aberta, mais iluminada, mais fica vazia e misteriosa.

Hoje, é imensa a quantidade de imagens que invadem nossas mentes e olhos. O vídeo clip, a incessante metralhadora da publicidade, a velocidade do tempo criou um excesso de informações que se anulam. Tanta é a exposição da realidade do mundo, que não vemos nada. Estamos repletos de imagens muito mais velozes do que podemos processar. A perfeição reprodutiva descreve bem o mundo, mas não o condensa em poesia.

Por isso, anseio por tempos mais lentos.

Por isso, lembro-me tanto do bar da Líder que, de noite, me parecia aquele barzinho do Van Gogh, jorrando luz, com estrelas enormes girando no céu de Botafogo. Com a invasão do Primeiro Mundo dos anos 80 para cá, (a realidade não pára) recauchutamos a antropofagia de 1922 para racionalizar nossa crescente dependência diante das linguagens globais e, hoje, chegamos a um ponto em que a antropofagia já nos deu indigestão.

E o bar da Líder foi mudando. Mudou de dono, mudaram as mesinhas de mármore para fórmica, mudou o balcão sujo para aço escovado, mudou o espanholzinho para uma máquina de fichinhas, a Líder mudou também daquela rua, sumiram os cineastas loucos, de cabelos revoltos e camisas de marinheiros. Mudou o Brasil, mudou o cinema, mudei eu, mudaram alguns cineastas da esquina da Líder para outra vida (também não sabíamos do embargo da morte). Assim éramos em 1967.

Por isso, tento fazer um filme que possa ser visto sem a pressa angustiada do rococó eletrônico que nos assola. Já que a vida está tão fragmentada e incessante do lado de fora dos cinemas, espero que uma vida mais clara apareça dentro da sala escura.

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