domingo, abril 05, 2009

MÍRIAM LEITÃO

No túnel do tempo


O GLOBO - 05/06/09


Na crise, está crescendo um dos males econômicos do qual tentamos nos livrar: a transferência de renda para cima. Como na ditadura, o caminho é o mesmo: uso dos bancos estatais, dos subsídios, dos incentivos fiscais, da rolagem de dívidas, dos fundos de poupança pública. A conversa é a mesma: fortalecer as empresas nacionais. A leitura local da crise, de suas causas e remédios, reabilitará velhos hábitos.

O governo atual sempre acreditou na ideologia econômica do governo militar. A ideia do crescimento liderado, dirigido, financiado e subsidiado pelo Estado sempre fez sentido para muitos deles. Como se o dinheiro público gasto sem controle não prenunciasse mais extorsão da sociedade, através de uma carga tributária alta. Eles se definem com o simpático nome de “desenvolvimentistas”, como se houvesse quem fosse contra o progresso. A questão sempre foi sobre a qualidade das escolhas para se chegar ao desenvolvimento.

Rondam, de novo, a economia brasileira as famigeradas operações-hospital do BNDES. O banco tem entrado de sócio e dado dinheiro para empresas com conhecidas dificuldades. Um dos possíveis candidatos ao dinheiro do banco é o Frigorífico Independência, que está em recuperação judicial e tem abatedouros em áreas de desmatamento. Os fundos públicos têm sido usados para rolar as dívidas de setores que têm dívidas com a sociedade. Alguns setores escolhidos estão tendo alívios fiscais que outros não têm.

Tudo lembra o caminho feito na época do governo militar. No primeiro ano do regime, quando anunciaram o PAEG, o Plano de Ação Econômica do Governo, os militares falaram em austeridade e cortaram gastos, mas deram aumentos salariais de 100% para os funcionários públicos e de 120% para os próprios militares. A tese de, na escassez, primeiro os nossos gastos, data daquela época.

O crescimento que aconteceu depois dos primeiros anos de tentativa de equilíbrio foi inflacionista e baseado em farta distribuição de recursos públicos para cima, sem controle e sem contrapartida. “O governo não hesitou em lançar mão de um amplo esquema de subsídios e incentivos fiscais para promover setores e regiões específicas, que passaram a fazer parte da política industrial do governo”, ensina Luiz Aranha Corrêa do Lago, no capítulo que escreveu para o livro “A Ordem do Progresso”, organizado por Marcelo Paiva Abreu, da PUC do Rio de Janeiro. “Todas as declarações em favor do desenvolvimento do setor privado e da livre operação do mercado contrastavam com a proliferação de incentivos, novos subsídios, isenções específicas” diz o texto.

Tudo era feito para criar empresas fortes e forjar o Brasil grande, mas acabou criando apenas empresas dependentes do Estado. O governo se agigantou. O brasilianista Tom Trebat, da Universidade de Columbia, registrou em seus estudos que de 1968 a 1974 foram criadas 231 empresas estatais.

Reli, durante a semana, textos sobre a história da política econômica dos anos do regime militar para um evento pedido pela CBN. Eu teria que responder – num programa gravado e com público, na Livraria da Travessa –, se os militares tinham acertado na economia. Apesar dos avanços, como a criação do Banco Central e investimentos em infraestrutura, minha convicção é que o saldo daquele período é negativo também na economia.

A democracia herdou a armadilha inflacionária, a divida externa, o Estado agigantado, uma estrutura fiscal tosca, um país fechado, uma indústria formada por monopólios e cartéis e empresários viciados em Estado. Anos foram gastos para desarmar alguns desses defeitos da economia. Outros ainda estão entre nós e crescem à sombra, e com o pretexto, da crise atual. Depois da palestra, uma amiga me falou que, quando ouviu a descrição do gigantismo do Estado e da distribuição de favores a empresas, pensou: “não mudou muito não”.

Houve uma lenta construção de alguns princípios e instituições que deram um pouco mais de transparência ao gasto do dinheiro público. O Banco Central deixou de ser banco de fomento para ser apenas autoridade monetária. A sangria de dinheiro público pelos bancos estaduais foi estancada. As siderúrgicas deixaram de ser estatais e, portanto, pararam de subsidiar com matéria prima barata grandes empresas e multinacionais. Foram fechados alguns monstros engolidores de dinheiro do contribuinte, tipo a Siderbrás. Acabaram monopólios, como o das telecomunicações. O país foi, aos poucos, entrando numa nova lógica.

Muito entulho do estatismo ficou. Muita gente no governo, com poder de decisão, acredita neste ideário de fortalecer a “burguesia nacional”, fazer um Brasil grande pela mão forte do Estado, criar estatais ou rever privatizações, salvar empresas mesmo que tenham quebrado por má gestão. Agora, eles ouvem do primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, que inflação não é mais problema, que agora é a era do expansionismo fiscal e monetário, que os governos devem fazer tudo o que for possível contra crise. Entendem isso como um sinal de que o mundo se curva, afinal, a eles. Que agora há uma licença global para gastar, que a ideia estatista sempre esteve certa. Esse é o risco do momento. O governo não está entendendo nossas limitações e pode aplicar, literalmente, um receituário que vai nos levar ao regresso institucional e gerar a crise fiscal futura.

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