quarta-feira, abril 29, 2009

ELIO GASPARI

"Com essas coisas a gente não brinca"

FOLHA DE SÃO PAULO - 29/04/09



Nosso Guia considera "burrice" especular sobre a saúde de Dilma Rousseff, mas burrice seria não fazê-lo



LULA E DILMA Rousseff tornaram-se personagens de um dilema que poderá marcar a história do país. Ambos deverão decidir se o câncer linfático da ministra é ou não um impedimento para que ela se lance numa campanha presidencial, com o compromisso de governar o país por quatro anos.
Se o Brasil tem 100 milhões de técnicos de futebol, daqui a pouco terá 100 milhões de oncologistas. A eles se juntam feiticeiros que pretendem transformar um câncer em anabolizante politico. Quando o ministro da Educação, Fernando Haddad, diz que, com a doença, Dilma talvez "possa se fortalecer", subordina um problema real às fantasias da marquetagem. (O câncer de pele de John McCain, operado em 2000 e 2002, foi mantido longe de sua agenda.)
Quando Lula diz que Dilma "não tem mais nada", está recorrendo ao vodu político. É compreensível que deseje o melhor para sua candidata, mas, na posição que ocupa, propaga uma atitude emocional que confunde o problema e compromete sua própria capacidade de decidir. Nosso Guia considera "burrice" e desrespeito especular sobre o assunto, mas burrice seria não fazê-lo. Tanto é assim que ambos especulam sobre o prognóstico, sabendo que, no sentido clínico da expressão, nenhum médico é capaz de dizer que a candidata "não tem mais nada".
Julgamentos contaminados por interesses estranhos à medicina já causaram danos à vida do país e dos próprios pacientes. Os fatores políticos contaminam questões médicas quando buscam prognósticos que confirmem desejos. É o "dá para levar". Nele, em 1985, perdeu a vida Tancredo Neves. O presidente eleito escondia seus padecimentos, coisa que Dilma Rousseff não fez. Sofria de dores no abdome e tinha até mesmo dificuldade para caminhar, mas acreditou que podia "levar" até o dia de sua posse. Não deu. Chegou ao hospital com um quadro infeccioso, caiu num teatro de mentiras e inépcias que terminou matando-o. A morte de Tancredo custou ao país a posse de um vice abatido pela ilegitimidade e nela esteve a raiz das limitações que marcaram todo o governo de José Sarney.
Noutro caso, em 1966, o chefe do serviço médico da Presidência diagnosticou que o marechal Arthur da Costa e Silva, ministro do Exército e candidato à Presidência, "estava mais entupido que pardieiro". Um de seus colaboradores diretos recebeu a informação e respondeu: "Agora não tem volta". Em 1969, Costa e Silva sofreu uma isquemia cerebral e os comandantes militares atiraram o país no maior período de anarquia militar de sua história.
Nos dois casos, a estratégia do "vai dar" enfeitiçou os feiticeiros. Num, Tancredo não fez o que devia. No outro, Costa e Silva candidatou-se ao que não podia. Pensando-se que "ia dar", aumentou-se o risco e chegou-se a uma situação na qual só restava o desfecho trágico.
Lula tem no Planalto um exemplo oposto. José Alencar tratou o seu câncer com honesta exposição e, depois de seis cirurgias, uma das quais com 18 horas de duração, pode assegurar que conservou a capacidade para exercer o cargo de vice-presidente. Contudo, como dizia Stanislaw Ponte Preta, o vice acorda mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada.
No melhor cenário, Lula poderá seguir seu próprio conselho: "Com essas coisas a gente não brinca".

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