domingo, março 15, 2009

JOÃO UBALDO RIBEIRO


A privacidade num boteco Leblon

O GLOBO - 15/03/09


— Cara, mas isso é nojento. Nojento mesmo.

— É, com certeza. Nojento é pouco.

— Está certo que o sujeito tenha vida pública e fique exposto, mas tudo tem limite. Esse cara passou muito dos limites.

— Que limites? — Os limites da legalidade e da decência! — Ah, sim, claro. Senador ou deputado? — Que senador, não estou falando de nenhum senador.

— De que é então que você está falando? Negócio de limites da legalidade e da decência normalmente é com deputado ou senador.

— Você não estava prestando atenção no que eu falei.

— É, desculpe, de fato me distraí um bocadinho, estou ficando assim com a idade.

— Que coisa, cara, tu até falou “nojento mesmo”, concordou comigo.

— Ah eu falei genericamente. É difícil hoje em dia o sujeito achar uma coisa que não seja nojenta, então eu vou logo concordando. Tudo aqui ficou nojento, concordar não tem perigo.

Mas desculpe, em qual nojentismo você estava falando? — Era nesse caso do delegado Protógenes.

— Um parêntese aqui, antes de você começar a me dizer o que há de nojento no caso dele. Você já notou como deram para aparecer uns nomes estranhíssimos, desde que o Lula assumiu? O sujeito chega a pensar que são extraterrestres.

Mas é tudo muito contraditório.

Esse mesmo não é nome de extraterrestre, tem o som do nome de um filósofo grego pouco manjado. Não sei por quê, agora imaginei um filósofo grego chamado Protógenes. Que é que você acha? Protógenes, o grande filósofo grego pré-socrático, autor da teoria da cacogênese, segundo a qual o ser humano se origina do cocô dos deuses. Taí, esse cara, se não existiu, devia ter existido. Vamos brincar de fazer a biografia dele? Num dos seus fragmentos mais conhecidos, Protógenes, que era ateniense, afirma que Zeus comeu mocotó e aí surgiram os espartanos. Quanto aos...

— Para de esculhambar, cara, ninguém aqui leva nada a sério. É por isso que...

— O que é pra levar a sério, os grampos que ele fez? Onde é que você mora, cara? Pega o jornal ali na banca, que a gente em duas horas, no máximo, grampeia o telefone de quem quiser.

Vê lá, tem um monte de detetives particulares. Todos eles grampeiam telefone numa boa, dizem que não, mas grampeiam. Portanto, é altamente democrático que os poderosos sejam também grampeados.

—Eu acho que não é com esses métodos que se faz justiça.

—Nisso você tem razão, não se faz mesmo. Você já viu alguma gravação levar alguém para a cadeia aqui? De cabeça assim não sei enumerar, mas já cansei de ouvir gravações e até filmagens de gente recebendo suborno em dinheiro vivo, gente transando droga pesada, acho que já vi e ouvi de tudo.

Só não vi acontecer nada a quem foi flagrado. Então qual é a diferença? —Ah, eu não penso assim. O direito à privacidade é sagrado.

—Deixa de ser bobo, cara, isso não existe. Pode ter existido, mas acabou há muito tempo. Cada dia acaba mais. Tem chip pra tudo, pra implantar, pra engolir, pra botar na roupa e assim por diante, você tendo conhecimento ou não. Não manjo muito telefone celular, mas com certeza já apareceram modelos que localizam o aparelho via satélite, ou qualquer coisa assim. Aí o cara atende o telefonema da mulher, diz que está na Avenida Rio Branco, mas ela vê que ele está num motel na Barra.

—Pois é, você já sentiu que estrago isso é? —Que estrago? Uma mão lava a outra, meu filho, no fim tudo se equilibra.

Ou você acha que interessa a todas as mulheres, ou mesmo à maioria, ter um celular assim? Quando o sujeito vai a um a motel, vai com uma mulher, mulher essa... Deixa de ser besta, cara, no fim tudo se equilibra. Na verdade, você me fez desenvolver um raciocínio que eu acho perfeito. O grampeamento geral é um avanço da democracia, todo mundo sabendo dos podres de todo mundo. Vai ser, inclusive, um alívio geral.

O deputado terá certeza de que todo mundo é testemunha de que ele é um ladrão descarado e então não precisará se desgastar, alegando pureza e inocência. Ele simplesmente dirá “sou, mas quem não é?” e a maioria vai ter de botar o rabo entre as pernas e calar a boca. Não, não, meu amigo, eu acho que, se o Protógenes fez o que dizem mesmo, está prestando um grande serviço à nação, vamos finalmente nos ver como realmente somos, grande Protógenes, encontrou a chave para compreendermos nossa identidade.

—Tu tá é de porre, cara.

—Um brinde ao Protógenes! Aos dois Protógenes! Cara, depois falam que o boteco não é um manancial de cultura e sabedoria. Esse cara devia ser canonizado, livrou um país inteiro da necessidade de ser hipócrita, São Protógenes do Grampo, o Grande Equalizador. Vamos saber agora por que, com um povo tão honesto, só os políticos são desonestos.

— Tu tá é delirando, cara.

—O mesmo disseram de Colombo e Pasteur, eu sei de que estou falando, pode ficar com seu moralismo obsoleto aí. Me diz uma coisa, o que é que tu acha que Tupã comeu antes de os brasileiros aparecerem?

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