quarta-feira, fevereiro 11, 2009

AUGUSTO NUNES

O Brasil tem cara de castelo na roça

Coisas da Política
Jornal do Brasil - 11/02/2009
 

ENQUANTO MENTIU, O PECADOR Edmar Moreira desfrutou do sossego que contempla os predestinados à impunidade. Fora dois escorregões, esse mineiro de Juiz de Fora, filho de um carteiro e uma professora, saiu ganhando de todas as enrascadas que começou a colecionar em 1968. Despachado para a reserva da PM por "abuso de autoridade", o capitão com fama de truculento ganhou o direito ao ócio sem dignidade. Com tempo de sobra, aproveitou a experiência que ganhara no quartel para montar em São Paulo a primeira de muitas empresas especializadas em serviços de segurança, fraudes fiscais e fuzilamentos de leis trabalhistas.

As empresas sempre tiveram má saúde financeira. Moreira já ficara rico quando o amigo e conterrâneo Itamar Franco o convidou, em 1989, a filiar-se ao Partido da Reconstrução Nacional (PRN), incorporar-se à seita liderada por Fernando Collor e candidatar-se a deputado federal por Minas Gerais. Além do mandato de quatro anos, ganhou privilégios especialmente bem-vindos ­ tornou-se, por exemplo, réu exclusivo do misericordioso Supremo Tribunal Federal. O que ganhou em 40 anos de mentiras pode ir para o ralo por causa de quatro minutos de sinceridade. Grávido de orgulho pela conquista da 2ª vice-presidência da Câmara cargo que brinda o ocupante com as atribuições de corregedor  derretido de gratidão aos colegas que trocaram o candidato oficial do DEM pelo amigo avulso, Moreira achou que aquilo merecia uma subida à tribuna que raramente frequenta.

Desde o verão de 2007, escalou o púlpito quatro vezes, a última delas para queixar-se da qualidade do atendimento médico aos pais da pátria. Comovido, Moreira deixou o coração falar. Descobriu antes do ponto final que a ideia fora tão infeliz quanto a que resultou no plantio de um castelo medieval na roça de São João Nepomuceno. A ousadia lhe ocorrera ao ouvir do candidato à Presidência Fernando Collor que, tão logo se alojasse no Planalto, liberaria a jogatina no Brasil. Em vez da fortuna sonhada, ganhou um mico de R$ 25 milhões. A soma dos dois fiascos sugere que, quando assaltado por bons sentimentos, Moreira faz maus negócios.

Se não tivesse sucumbido momentaneamente à boa-fé, teria ignorado o falatório de Collor e exorcizado o perigo de encarnar, no século seguinte, a versão mineira de conde francês arruinado. Se tivesse resistido à tentação da sinceridade, não teria perdido o cargo de corregedor e o sono, confiscado pelo risco de perder o mandato e, se houver juízes em Brasília, o direito de ir e vir. Enunciada por Lula, que parece ter sido enquadrado na categoria dos inimputáveis, a proposta de Moreira talvez fosse aprovada por aclamação.

Já que a Câmara absolve todos os parlamentares, à exceção dos bois de piranha reivindicados episodicamente pela desfavorável conjunção dos astros, por que não encurtar o espetáculo da hipocrisia transferindo para o Judiciário a decisão sobre atentados ao decoro teoricamente punidos com a cassação? Mas um diácono do baixo clero não pode dizer em voz alta o que disse. E disse com o desembaraço de quem se considera liminarmente absolvido pelos pecadores companheiros. Foi um pronunciamento histórico, deixaram claro a reação da plateia e os desdobramentos do episódio. Daqui a muitos anos, colegiais em visita às ruínas do colosso erguido nos fundões de Minas serão informados pelo guia da excursão que, em fevereiro de 2009, o Brasil mostrou a sua cara. Lembrava um castelo no mato, habitado por um monarca de muita sabença e pouca visão, incapaz de enxergar a olho nu uma nobreza fora-da-lei.

O caso de Moreira provou que os partidos abrigam qualquer meliante, com a cumplicidade passiva dos demais deputados e a cumplicidade ativa do Judiciário, que não condena ninguém. Que qualquer abjeção promovida a representante do povo por cretinos fundamentais com direito ao voto pode acabar na Mesa da Câmara. Que eleitores e eleitos não veem diferença entre currículo e prontuário. Que cabem numa van os que sabem o que é um corregedor (incluídos os jornalistas). Que a paisagem política do Brasil parece mais medieval e mais inverossímil que o castelo nascido na roça. .

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