segunda-feira, janeiro 05, 2009

NAS ENTRELINHAS

Yes, nós temos nosso subprime


Correio Braziliense - 05/01/2009
 


A versão brasileira da crise mundial pode se realizar pela farra de um ano e meio de empréstimos camaradas às pessoas físicas

Passo a mão no telefone e ligo para o Bandeira, isso já faz uns três meses. — Alô, grande mestre!, digo. — Fala, cabra da peste, responde, revigorando o sotaque pernambucano, que gosta de praticar, embora já o quase tenha perdido. — E essa crise?, arrisco, em nome do ofício de repórter. — Qual, a marola?, diverte-se, já sorrindo, e segue: hoje mesmo demiti 15. — Mas por quê?, provoco. — Rapaz, os bancos pararam de soltar dinheiro, ninguém mais está pegando. Tô vendendo quase nada. Vou fechar o escritório. 

O Bandeira é um velho amigo. Sujeito experiente, prático. Não perde tempo com bobagens. Uma das virtudes de que lhe invejo é o gosto pelos negócios. Mesmo aposentado, quando a economia começou a bombar, meados de 2006, ele abriu um pequeno escritório de empréstimos. Não punha capital próprio. O serviço era captar clientes no meio da rua — para tanto, recorria a panfleteiros espalhados nas esquinas da cidade com folders onde se lia CRÉDITO FÁCIL ou DINHEIRO NA HORA — e os entregar a um grupo de seis grandes bancos. Levava uma comissão e vivia feliz. 

— Como assim, pararam de soltar dinheiro?, continuei, para não deixar o papo morrer. — É, agora a gente manda os documentos para o cadastro e eles recusam, não querem nem saber. Já viu disso? Até a semana passada, eles nem olhavam, a gente mandava e o dinheiro saía com um ou dois dias. Agora deram para fazer doce. Demiti todos os panfleteiros. Vou fechar o escritório. 

Naquela época, os jornais andavam aflitos. Dias e dias de manchete revelavam o derretimento do preço das ações, o encarecimento do dólar, a derrocada de bancos gigantes e de empresas enormes. Li, aqui no Correio, do gerente de uma revendedora de veículos, a explicação de que as vendas haviam caído porque os bancos já não estavam financiando qualquer um que lhes pedisse. 

Desde então, a temperatura do noticiário mudou. Só o presidente da República mantém-se irredutível. Onde quer que vá, não faz outra coisa que não inflamar as massas. Insta-as a consumir, a gastar. Promete obras e despesas por parte de seu governo. Exorta os prefeitos recém-empossados a segui-lo. Vendo-o, acho tudo meio exagerado e penso: há algo errado. 

E há mesmo. A curta declaração do gerente da agência de veículos e meu diálogo com o amigo Bandeira revelam que os sólidos e bem-apessoados bancos nacionais passaram mais de um ano e meio dando vazão a empréstimos sem se preocupar muito com o cadastro do tomador. Ou seja, o sujeito estava desempregado, mas conseguiu um emprego há três meses, o que é ótimo. Contracheque na mão, foi lá, pegou um dinheiro e comprou um carro usado, melhor ainda. Mantém-se regular e pontual no pagamento, excelente. 

Acontece que esse camarada faz parte da camada flutuante do mercado de trabalho — quão seja, quem tem menos de um ano de trabalho, contrato temporário e afins. Se alguém puxar o freio da economia, ele vai voltar ao estoque de mão-de-obra desocupada. Perderá renda. E dará calote em quem lhe emprestou dinheiro, isto é, nos bancos. 

Trata-se da mesma engenhoca produtora do pecado original, os tais subprimes dos EUA. Lá, a coisa se criou nos empréstimos habitacionais e se alastrou no mercado de derivativos. É o gênese da crise e motivo de estarmos todos menos animados do que estávamos há 12 meses. 

Na versão brasileira, porém, temos boas razões para manter a confiança no sistema. Em primeiro lugar, o montante de crédito fornecido pelo setor privado do sistema financeiro é relativamente pequeno. Anda em torno de R$ 522 bilhões, dos quais pouco mais de R$ 200 bilhões tiveram como destino as pessoas físicas e desses, R$ 80 bilhões para a compra de carros, novos ou usados, e R$ 11 bilhões para outros bens. São valores altos, capazes de criar dificuldades, mas não de levar nenhum dos grandes bancos brasileiros à lona, como aconteceu nos EUA. 

De mais a mais, é baixo o índice de securitização desses créditos, se comparado o que houve lá fora. Assim, a capacidade de metástase é bem menor. 

Lula e seus auxiliares vêm tratando de pôr lenha na fornalha para manter o ritmo da locomotiva. Trabalham com a lógica de que se o ciclista parar de pedalar, a bicicleta cai. Louvável a atitude, mas há um pecadilho: a melhor forma de o governo ajudar não é gastando a poupança pública adquirida nos últimos anos, mas preservando-a. Assim, cria expectativa de redução nas taxas de juros de longo prazo e ilumina o caminho à frente, em vez de cobri-lo com a fumaça negra do déficit público, como está fazendo. 

Por fim, o telefonema para Bandeira. Terminou assim: — Vais fechar o escritório para fazer o quê? — Ah, já mandei o contador preparar a papelada. Vou reabrir como empresa de cobrança.

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