domingo, dezembro 14, 2008

JOÃO UBALDO RIBEIRO

Realidade, que realidade?

Estado de São Paulo 14.12.08

A frase “ os números não mentem” nunca deixou de ser verdadeira. Contudo, os números só existem na cabeça do homem, e o homem mente. Ou seja, é fato que os números não mentem, mas há grande fartura de gente que os emprega para mentir.


E os números costumam intimidar quem os escuta, principalmente aqueles, que imagino maioria, em que a matemática ressuscita o terror experimentado nos bancos escolares.

A precisão do número é mortal e dá sempre a impressão de que quem os utiliza, numa argumentação qualquer, tem razão. Isso cria situações curiosas, porque, em certos casos, quanto mais “preciso” o número, mais suspeito ele é. Estatísticas como “37,23 por cento das crianças de tal cidade consideram a freqüência à escola uma perda de tempo” se originam de dados que não podem ser apresentados dessa forma, principalmente porque há neles uma margem de erro que varia de caso a caso. Desconfiar, pois, de números tão certinhos assim.

Desconfiar também de comparações aparentemente inatacáveis, como, para escolher um exemplo fácil, a criminalidade de Nova York com a do Rio ou São Paulo. De primeira assim, o freguês fica inclinado a crer que, olhando as estatísticas de Nova York e olhando as nossas, talvez estejamos até melhor, numa categoria ou outra. Certo? Errado, claro. Eu mesmo já soube de casos de gente que teve seu carro roubado e não se deu ao trabalho de dar parte à polícia. Pode ser até mentira, mas terá seu fundo de verdade.

Um grande número de vítimas de assalto nas grandes cidades brasileiras não dá queixa na polícia, até porque é ameaçada de represálias por parte dos assaltantes, se vier a cometer essa bobagem, aliás inútil na maior parte dos casos. Por essas e muitas outras, é freqüentemente um exercício altamente besteirógeno (gerador de besteiras) a comparação entre estatísticas estrangeiras e as nossas, porque, nas estatísticas, há bastante mais que números.

Uma coisa interessante, por exemplo, aconteceu recentemente.

Viu-se alardeado por todo o Brasil um esplêndido crescimento da classe média, resultado da ação do governo, evidência de que está havendo redistribuição de renda, de que o padrão de vida geral está melhorando.

Certo, certo? Errado, claro.

Não faz também muito tempo, o PT, se não me engano, chegou a sustentar que 600 dólares por mês eram o mínimo para um trabalhador sustentar a família. Mas agora mudaram de idéia e quem ganha 600 dólares não pertence mais ao nível de salário mínimo, mas à classe média.

A classe média, novamente se não me falham os escassos neurônios, é agora do pessoal entre 500 e 2.500 dólares. Notaram a inteligência, sentiram como os números não mentem? Bastou alterar uma bobagem nas definições para os números a refletirem sem equívoco. A classe média aumentou e acabouse.

Quanta gente ia morrer sem ter esse gostinho, se não fosse pela visão social do governo? Lembro o presidente da República saindo garboso do hospital paulista em que acabara de resolver um pequeno problema de saúde e dizendo que recebera o tratamento que qualquer outro cidadão brasileiro receberia. Bem antes, ele já comentara que a saúde pública no Brasil se aproxima da perfeição, de maneira que, sendo ele presidente e eu apenas um dos pagantes, não vou desmentir o homem. Vou até espalhar isso, na minha próxima estada em Itaparica. O pessoal vai gostar de saber que a cirurgia que o médico disse que era urgente, mas só foi marcada para meados do próximo ano, pode ser feita logo, no Albert Einstein. Basta pedir ao SUS a requisição, apresentá-la na repartição pública adequada e receber passagem de ida e volta a São Paulo, com direito a internação e acompanhante.

Eu sei que todo mundo devia ter conhecimento disso, mas a imprensa, como sempre, sabota e a informação não é dada.

Também padeço de torturante confusão mental, quando por acaso assisto a algum noticiário de televisão.

É comum que, no mesmo programa, se afirme indiretamente que a economia está ótima e que o emprego aumentou, para logo em seguida (ou melhor, na seqüência — pois que agora só se fala assim, notadamente entre os narradores de futebol, para os quais nada acontece depois, mas na seqüência) abordarem perspectivas sinistras, que os apresentadores descrevem com os semblantes adequadamente compungidos. Fica sob nossa responsabilidade resolver o que é verdade e o que é falso.

E por acaso a lembrança dos narradores de futebol vem a calhar para o assunto de que estou tratando.

Lembro as primeiras transmissões de jogos de futebol pela tevê, necessariamente ao vivo, pois não existia videoteipe. Os narradores das rádios tiveram de adaptar-se, deve ter sido penoso. Muita gente, inclusive meu pai, baixava todo o volume da tevê e ligava um rádio, só para pegar alguns narradores que, ainda sem se dar conta de que agora o espectador estava vendo o que acontecia no estádio, prosseguiam floreando, enfeitando e puxando a brasa para o time de sua torcida, a ponto, por exemplo, de muitas vezes vermos jogadores dando pulinhos e esfregando uma perna machucada de leve, enquanto, pelo rádio, ele contorcia-se em dores no gramado.

Sim, há várias maneiras de ver a realidade, há até gente que acha que ela não passa de uma alucinação.

É uma boa convicção, que às vezes me tenta. E é mesmo muito difícil estabelecer o que de fato aconteceu. Quando o presidente soltou um palavrão na tevê, todo mundo o u viu. Contudo, ao ser transcrito para veiculação oficial, o palavrão virou “inaudível”. Todo mundo ouviu, mas é mentira. Foi inaudível, do mesmo jeito com que os escândalos envolvendo gente sua foram invisíveis para o presidente.

Qual o sentido que vão abolir agora, “na seqüência”? Faço um apelo que creio não ser só meu: dêem um fim logo no olfato, porque ninguém agüenta mais.

PEDRO MALAN

Onde se lê 2008/2009, leia-se 2009/2010

Estado de São Paulo 14.12.08


A piada é conhecida - e antiga: o que deixa o cargo faz chegar três envelopes lacrados e numerados a seu sucessor. Para serem abertos, um de cada vez, apenas em diferentes momentos de crise. Na primeira crise, o envelope, aberto, traz o conselho: não deixe que a crise o atinja, jogue toda a culpa no(s) seu(s) antecessor(es). Na segunda crise, o envelope, aberto, contém a recomendação: não permita que a crise o alcance, livre-se de pessoas-chave de sua equipe. Na terceira crise, a sugestão do envelope, aberto, é: escreva três cartas para seu sucessor.

O presidente Lula utilizou durante anos, ad nauseam, a sugestão da primeira carta. Esperemos que apenas como esperteza política. Afinal, não lhe seria conveniente reconhecer, de público, algo que ele sabia - ou deveria saber. Que, por exemplo, o risco Brasil se multiplicou por 4 e a taxa de câmbio disparou de R$ 2,30 para R$ 3,99 por dólar entre abril e outubro de 2002 (com todas as implicações sobre os índices de inflação do último trimestre do ano), em larga medida, devido a incertezas, não sem fundamento, sobre o que seria o "modo petista de governar" em matéria de política macroeconômica - entre outras.

O segundo envelope, aberto em algum momento em 2005, levou à saída do governo do ministro José Dirceu, na prática, até então, o virtual chefe do governo; o verdadeiro "capitão do time", na expressão do próprio presidente. Desde então, o presidente Lula utilizou inúmeras vezes a sugestão da segunda carta, ao jogar ao mar pessoas-chave de seu governo e de seu partido, sempre que crises pudessem eventualmente atingir a sua própria pessoa. E deixou claro que não hesitaria em utilizar a recomendação contida no segundo envelope em eventuais crises futuras.

O presidente Lula ainda não abriu o terceiro envelope. É desnecessário fazê-lo. Em parte, porque o presidente, pessoa bem-humorada, conhece a piada - tanto que a vem seguindo à risca. Em parte, porque ainda tem algum tempo antes de escrever três cartas a seu sucessor.

Seria interessante, embora meio inútil, imaginar qual seria o conteúdo das três cartas do presidente Lula. Mas, seguramente, a primeira carta seria redigida de outra maneira. É possível que o atual presidente pense em sugerir a seu sucessor que procure deixar de lado aquilo que virou uma marca registrada sua: a eterna ladainha do nunca-antes-jamais-na-história-deste-país.

Afinal, já estamos em janeiro de 2008. Passaram-se cinco anos ao longo dos quais o governo Lula se beneficiou de uma combinação positiva de três ordens de fatores: uma situação internacional extraordinariamente favorável de 2003 a 2007, uma política microeconômica não-petista seguida por Antonio Palocci e Henrique Meirelles e uma herança não-maldita de mudanças estruturais e avanços institucionais alcançados na vigência de administrações anteriores - inclusive de programas na área social que foram mantidos, reagrupados e ampliados.

Com esta base, o governo Lula vem construindo a herança que legará a seu sucessor em 2010. Mas, antes disso, este governo será testado, em 2008 e 2009, de uma maneira que nunca foi, desde o seu início, cinco anos atrás.

É verdade que houve um duro teste no início de 2003. Pelo qual este governo passou, e bem, e não apenas porque os ventos da economia internacional passaram a soprar a nosso favor. Vale lembrar, neste conturbado início de 2008, que o fundamental foi a capacidade de resposta da área econômica do governo às conseqüências do pânico que se instaurou nos mercados no segundo semestre de 2002 (no Brasil, por razões conhecidas; nos EUA, por medo de deflação). O ministro Palocci formou sua equipe com profissionais como Marcos Lisboa, Joaquim Levy e Murilo Portugal, na Fazenda, e Henrique Meirelles, Ilan Goldfajn e Beny Parnes, no BC. Essa equipe formulou - e implementou - uma clara resposta de política macroeconômica às turbulências, incertezas e medos que prevaleciam em fins de 2002, início de 2003.

O aumento do esforço fiscal - anunciado e realizado - e a reafirmação do compromisso inarredável com o controle da inflação mostraram, mais uma vez, aos brasileiros e ao resto do mundo, que o Brasil, apesar das aparências em contrário, continuava, gradualmente, a se transformar num país mais "normal", isto é, um país mais previsível, que dispensava tentativas de reinvenção da roda, de radicais rupturas com o passado, de experimentos heterodoxos nunca antes vistos. Um país no qual a política macroeconômica não seria conduzida com argumentos ideológicos ou político-partidários. O governo Lula e a economia brasileira derivaram um enorme benefício desta percepção de que caminhávamos para nos tornar um país mais maduro. E, principalmente, um país com capacidade de mostrar certa qualidade nas suas respostas de políticas microeconômicas e setoriais a situações de crise.

Pois bem, é exatamente esta percepção que estará sendo submetida a duros e múltiplos testes em 2008 e 2009, quando, pela primeira vez desde que assumiu a Presidência, em 2003, o governo Lula não contará com uma situação internacional tão extraordinariamente favorável como até 2007.

Ao mesmo tempo, o País enfrenta uma deterioração da situação fiscal, maiores pressões inflacionárias, gargalos em infra-estrutura, um risco de racionamento de energia, excessos de complacência e voluntarismo de seus governantes, continuado aparelhamento e loteamento político de cargos públicos, contínuo fluxo de bizarrices de sua crescente ala "heterodoxa" e uma extraordinária dificuldade em controlar a excessiva taxa de crescimento dos gastos correntes do setor público - em parte, porque muitos ainda acham que isto não é problema, mas solução para o "raquitismo" do Estado, o crescimento da economia e a sustentação da base política do governo.

Ao responder a isto em 2008, o presidente Lula já estará, na prática, escrevendo suas cartas a seu sucessor.

Feliz Natal e bom 2009 a todos.

GAUDÊNCIO TORQUATO

A sacerdotisa, o cardeal e os bispos


O Estado de S. Paulo - 14/12/2008
 

Sob pesadas nuvens que escondem seus contornos, os horizontes de 2010 costumam ganhar o alcance da vista todas as vezes que os oráculos dos tempos modernos - as pesquisas de opinião pública - levantam os véus do futuro para satisfazer a insaciável sede do ser humano de saber se os deuses deixarão mais aberta ou mais fechada a rota de seu destino. Em se tratando do brasileiro, a curiosidade assume proporções fantásticas, eis que o ethos nacional, balizado por altas taxas de egocentrismo, usa o conhecimento sobre o que virá para ajustar condutas, preencher espaços e tirar proveito de situações. No campo da política, o exercício premonitório virou moda. Para provar que não temos nada a dever aos gregos antigos, o País acaba de ver entronizada sua profetisa, a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, elevada ao templo de Oráculo pelo senador José Sarney, que, debaixo do fardão de imortal da Academia Brasileira de Letras, usa a prerrogativa da liberdade poética para batizá-la como “sacerdotisa do governo”. Deve achar que o título de “mãe do PAC” é pobre. A premonição, feita na inauguração de um trecho de rodovia, em Colinas (TO), terminou com a promessa do presidente Lula: “Vou fazer o sucessor em 2010.” A especulação, mania nacional, ganha as ruas.

Para entender melhor a nova qualificação da ministra, candidata in pectore de Lula à sua sucessão, lembremos que, nos idos da Grécia antiga, a sacerdotisa, mulher de vida irrepreensível, era escolhida para se comunicar com os deuses e trazer respostas aos consulentes sobre seu futuro, o da sua família ou da sua pátria. Um dos lugares mais venerados pelos gregos era Delfos, no golfo de Corinto, onde as mensagens de Zeus chegavam aos interessados. Sem sabermos por que o senador Sarney preferiu nomear Dilma pitonisa, em vez de guerreira, como Joana d’Arc, ou mulher do Brasil Nação, como é conhecida Anita Garibaldi, importa, agora, analisar as retas e curvas no caminho da ministra. Vale lembrar que a pesquisa Datafolha da semana passada a colocou num espaço de 7% a 12%. Trata-se de uma pontuação até desejável. A tendência recorrente em disputa eleitoral é de crescimento lento e gradual de quem está atrás e declínio de quem está muito na frente, quando a foto flagra pré-candidatos em ocasiões distantes do pleito.

Mais eficaz é avaliar eventuais impactos que cenários positivos e negativos para o País poderão acarretar aos contendores. Voltemos à simbologia grega do senador Sarney. A região do templo de Delfos era dominada por uma monstruosa cobra Píton, que impedia alguém de passar. Mas Apolo, desafiando a serpente, derrotou-a em vigoroso combate, depositando seus ossos no solo abaixo do Oráculo. Ora, há uma Píton - que recebeu de Lula o nome de “marolinha” - a impedir que a ministra Dilma chegue ao templo de Delfos, ou melhor, ao Palácio do Planalto, um dos lugares cobiçados pelos também pré-candidatos tucanos José Serra e Aécio Neves, que calibram suas possibilidades pelo front das oposições. Digamos que Lula, no papel de Apolo - encenação que toparia fazer com gosto -, domine o bicho, mesmo que este seja tão impetuoso como a “pororoca”, o encontro das águas amazônicas da crise, e pose de deus vitorioso. Sob esses louros, a premonição lulista de que fará o sucessor poderá não dar com os burros n’água, como ocorreu com a promessa de eleger Marta Suplicy prefeita de São Paulo.

Há, porém, um cardeal de reza forte que pretende orar no templo do Planalto. José Serra carrega densidade conceitual maior que a da sacerdotisa Dilma, fruto de experiência política e administrativa longa e profícua, e perfil em elevação pelo desempenho à frente do Estado mais poderoso da Federação. É evidente que as ondas (da marolinha ou da pororoca?) puxarão seu corpo para cima ou para baixo das águas eleitorais. Se a crise acarretar estragos, a ponto de mexer com o bolso dos consumidores, o clima de desconforto social deverá ampliar o eco do discurso oposicionista. A recíproca é verdadeira. Quanto menos devastação a crise provocar, Apolo e sua pré-candidata terão melhores condições de ensaiar a ópera da grandeza brasileira, cantando a letra cívica de que não se mexe em time que está ganhando. Serra simbolizaria mudança nas regras do jogo e, com a trombeta do antilulismo/petismo, poderá canalizar energias e mobilizar platéias adormecidas. O desafio que tem é o de segurar o alto índice de 41% que a pesquisa hoje lhe confere. Não será fácil.

Aécio Neves e Ciro Gomes são outros nomes aferidos pelo mesmo levantamento. Como bispos da missa presidencial - e não entra aqui juízo de valor, apenas um registro semântico/simbólico em comparação com os outros -, sua participação na cerimônia dependerá do processo de seleção dos candidatos da situação e da oposição. Aécio carrega a leveza da jovialidade, a fala da convergência, administrando com sucesso o segundo maior colégio eleitoral do País. É mais flexível na dança do que Serra, seu correligionário. Mas, como diria o maioral dos tucanos, Fernando Henrique, há uma questão de precedência. E o governador paulista, no caso, está na ponta e exibe cacife mais pesado. Resta ao mineiro abrir outras portas ou adiar a idéia de resgatar o legado que o destino tirou do avô Tancredo. Ciro figura na planilha alternativa de Lula, sendo mais uma interrogação do que afirmação. É, por enquanto, um bispo sem diocese. Quanto a Heloísa Helena, essa, sim, com jeito de Joana d’Arc, o que se pode prever é uma performance confinada aos parcos recursos e ao estreito palco de seu PSOL.

Pela ciência oracular, só as águias de Zeus poderão apontar com exatidão quem chegará ao Oráculo do Planalto. As duas serão soltas de lugares opostos na terra. Quando o vôo das duas se cruzar, ali, bem embaixo, estará o escolhido. Uns acham que o ponto exato é São Paulo, outros imaginam ser Brasília. Um grupinho aponta Belo Horizonte. Uns e outros apostam tanto na vitória quanto na derrota de Apolo para Píton.

DORA KRAMER

Dicas de candidato

O Estado de S. Paulo - 14/12/2008
 

O PSDB tem, em tese, dois candidatos à Presidência da República: os governadores de São Paulo, José Serra, e de Minas Gerais, Aécio Neves. Ambos em campanha, ambos com estratégias diversas, embora condizentes com os respectivos objetivos.

Serra pretende mesmo disputar a sucessão de Luiz Inácio da Silva em 2010 e, por isso, diz que não é candidato. Aécio aprendeu política na família, sabe respeitar os fatos, mas sabe também a importância de se ocupar espaços e, por isso, assume postura de candidato, embora hoje a hipótese seja improvável.

Quando os dois falam favoravelmente à realização de prévias no partido em 2009, constroem publicamente o conceito da convergência no presente, mas cientes de que no modelo brasileiro prévia é sinônimo de divergência. 

Portanto, o mais lógico é que o PSDB esteja apostando no caminho da candidatura “natural” e não na contratação de um conflito futuro. Isso não quer dizer que o quadro esteja consolidado.

Há tempo pela frente, tudo pode acontecer. Inclusive as circunstâncias se alterarem e Aécio Neves, por algum motivo, ser o candidato a presidente e Serra disputar a reeleição de governador. 

Significa apenas que cada um cumpre o seu papel, todos engajados num projeto de poder cujo benefício será tão mais compartilhado entre todas as forças do partido quando mais unidas estiverem.

Geraldo Alckmin, por exemplo. Se quisesse hoje estaria preparado para dar aulas de pós-graduação sobre o ato de se esmurrar pontas de facas sem um detalhado exame prévio a respeito das condições objetivas de suportar (e superar) as conseqüências. 

No reino dos inteligentes, os erros existem para se transformar em acertos. Tanto José Serra quanto Aécio Neves, cada um com suas peculiaridades, atuam nessa esfera.

O governador de Minas acabou de demonstrar isso quando conseguiu se recuperar em tempo recorde do equívoco cometido no primeiro turno da eleição municipal em Belo Horizonte e na segunda etapa cumpriu a meta de eleger o prefeito mais harmonioso aos seus projetos. 

Transitou do fundo do poço à borda em 15 dias. Não seria no âmbito federal, num plano da dimensão da conquista da Presidência da República e com seu destino diretamente em jogo que se arriscaria a estender o passo para além das possibilidades das pernas.

Tampouco pode fazê-los menores. A noção do peso de Minas, da aceitação de que dispõe em setores organizados, da possibilidade de ampliar essa vantagem para o eleitorado e das próprias capacidades impedem Aécio Neves de se comportar como um subalterno de uma candidatura supostamente sacramentada. Portanto, no momento Aécio Neves faz o que lhe cabe fazer. 

O governador de São Paulo também. Corrige os tropeços do passado e acerta o caminho futuro. 

Por mais que Serra esteja absolutamente convicto de que a vez é dele, faz o maior esforço (em público, ao menos) para transparecer desprendimento. Trata a postulação de Aécio Neves como uma possibilidade real, defende prévias, promove encontros periódicos com políticos de vários partidos, contém o entusiasmo ante as boas novas das pesquisas e diz que são “apenas uma fotografia do momento”.

Articula com antecedência as alianças, agrega apoios sem excluir novas possibilidades, circula muito à vontade na oposição (em tese, o PT) e ultimamente acrescentou charme, simpatia e muitas entrevistas na relação com jornalistas.

Marca distância do pré-candidato quase auto-proclamado de 2002 e tem se empenhado bastante para levar em conta a legitimidade dos anseios alheios no campo da política, aí incluídos rituais afetivos antes relegados ao terreno das futilidades com as quais não é necessário perder tempo.

Junto a todos esses sinais, José Serra tem revelado aos poucos alguns aspectos do discurso do candidato de 2010 e deixado pistas de como lidaria com algumas questões, se eleito presidente.

A cobrança para que a Fundação Padre Anchieta seja mais eficiente, aumente a captação de recursos e contenha gastos poderia ser vista como uma antecipação da administração Serra para a TV Brasil.

A proposta de avaliação do funcionalismo por critério de desempenho, aprovada pela Assembléia Legislativa, seria uma dica de como o pretendente a presidente abordará a questão do aparelhamento partidário do Estado na campanha de 2010. 

Nas suas últimas entrevistas o governador de São Paulo tem dito que os gastos com custeio e o inchaço político da máquina são os maiores desafios a serem enfrentados pelo sucessor, ou sucessora, de Lula. 

Em conversas particulares, diz que tem a solução. É de se imaginar que, na essência, não sejam diferentes das adotadas no governo do Estado.

Outra pista é a abordagem que Serra faz do cronograma das obras do governo federal. Na avaliação dele, os atrasos são normais porque o processo de investimento é longo e difícil de ser implantado. “Gastar é fácil, investir é mais complicado”, disse na última quarta-feira mostrando que não brigará com a sigla PAC.