segunda-feira, julho 23, 2007

VEJA

Ensaio: Roberto Pompeu de Toledo

MORATÓRIA AÉREA, JÁ

A tragédia de Congonhas decorreu de umainépcia conjuntural aliada a uma tibieza histórica
O desastre da Gol, dez meses atrás, ficou escondido na floresta. Este, ao contrário, ocorrido numa rua movimentada da mais movimentada cidade do país, converteu-se num outdoor da incompetência governamental brasileira. Se houvesse coragem e vergonha na cara, a partir daquele exato momento em que o avião da TAM escapou da pista, deu um rasante sobre a avenida e foi embrechar-se no prédio do outro lado, deveria ter sido decretada uma geral e inapelável moratória aérea no país. Pousos e decolagens seriam suspensos, em todo o território nacional, pelo tempo necessário para uma ampla e definitiva rearrumação de todas as etapas do tráfego aéreo. Dane-se que famílias se veriam separadas, que autoridades se achariam impedidas de executar suas funções, que negócios deixariam de ser feitos, que muita atividade seria paralisada e muito dinheiro perdido. Dane-se que se condenariam milhões de pessoas a buscar socorro na falida rede rodoviária nacional. Dane-se que o país se converteria em alvo de chacota do mundo – mesmo porque já é. A verdade nua e crua, depois que, no curto espaço de dez meses, foram quebrados dois recordes em matéria de vítimas em acidentes aéreos, é que o Brasil não é um país onde se possa voar de modo seguro, para não falar em conforto e observância de horários. Melhor, sendo assim, é não voar de vez.
A causa ou as causas exatas do acidente ainda demorarão para ser anunciadas, se é que o serão um dia. Aguardam-nos, nos próximos meses, a lengalenga e o empurra-empurra habituais. Mas é certo 1) que a pista principal do Aeroporto de Congonhas, na qual tentava pousar o avião da TAM, foi entregue sem as ranhuras que possibilitam o escoamento da água, depois de ter permanecido fechada, durante meses, para reformas realizadas, precisamente, para prevenir derrapagens, e 2) que dois casos de aviões que derraparam se registraram, nos dias anteriores. Ou seja: é de palmar evidência que a pista não apresentava boas condições. Eis-nos diante de um caso, tão tipicamente Brasil, de obra pública malfeita, ou feita pela metade. Tal circunstância tipifica o acidente como fruto mais do que provável de uma incompetência conjuntural, aliada a uma tibieza histórica.
A incompetência conjuntural é a do governo Lula. Jamais, neste país, se viu governo que combinasse tanta papagaiada com tão pouca ação. Nos dez meses em que, a partir do acidente da Gol, a crise aérea aflorou em toda a sua magnitude, num coquetel que mistura controladores de vôo rebeldes, infra-estrutura deficiente e empresas aéreas sem respeito pela clientela, o presidente rugiu, esbravejou e ameaçou na mesma medida em que tomou providência zero. O que ficou claro, nesse período, foram o caráter decorativo do Ministério da Defesa; a inoperância da Anac, a Agência Nacional de Aviação Civil, vitimada, como as demais agências reguladoras, pela ideológica má vontade petista; o atordoamento da Aeronáutica, perdida entre a defesa dos sistemas pelos quais é responsável e a luta pela preservação de seus nichos na aviação civil; e as artimanhas da Infraero, tão notória pelas lojas que multiplica nos aeroportos quanto pelos escândalos que se esfalfa por manter fora do alcance das investigações. O fato de ter privilegiado uma ampla reforma nas instalações de embarque e desembarque em Congonhas sobre a reforma da pista diz tudo da filosofia da empresa. Ela age como um hospital mais voltado para os bordados nos lençóis do que para manter em ordem os bisturis dos cirurgiões.
A tibieza histórica é a complacência com que, já há muitos governos, se empurra o problema de Congonhas. Não é só inconveniente, é louco ter num aeroporto pequeno, cercado de ruas, trânsito intenso, prédios e casas, o mais movimentado do país. Surge um acidente, como o de 1996, em que um avião da TAM desabou sobre casas da vizinhança, e o problema vem à tona. Em seguida é esquecido. Os passageiros pressionam as companhias aéreas, que pressionam as autoridades, e uma quantidade crescente de vôos vai sendo alocada em Congonhas, para fugir dos mais distantes Cumbica e Viracopos. A conversa de construir um trem expresso para Cumbica, ou mesmo para Viracopos, não serve senão de flauta para encantar os carneirinhos. Se alguma coisa é líquida e certa, neste último acidente, é que, se não fosse em Congonhas, não ocorreria. O avião não encontraria um prédio em sua arremetida. E muito menos um prédio com um posto de gasolina ao lado – até posto de gasolina tem ali, grudado!
O apagão aéreo, desdobrado em dupla tragédia, ocorre no mesmo país em que se moldam as convicções com mensalões, se assalta o Ministério da Saúde com a compra de ambulâncias superfaturadas, empreiteiras conhecem a prosperidade erguendo pontes do nada para lugar nenhum, plataformas de exploração de petróleo fazem jorrar ouro no bolso de espertalhões e o Congresso Nacional serve de homizio para autores de crimes e malfeitorias. Nada, na esfera pública, dá certo.

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