quarta-feira, maio 06, 2020

Toffoli defende a liberdade de expressão de canhões, mas não a dos teclados - REINALDO AZEVEDO

UOL - 06/05

O que dizer de um presidente do Supremo que se cala quando profissionais de imprensa são espancados, no exercício de sua função, num ato político em defesa de um golpe militar, mas se dá a perorações em defesa da liberdade de expressão ao defender o direito que teriam ministro e chefes militares de exaltar um golpe de estado em uma página oficial?

É fácil saber quando uma pessoa está perdida ou, quem sabe?, se deu por achada. É o caso do ministro Dias Toffoli.

Indicado para o cargo em razão de sua proximidade com o PT, errou e acertou ao longo de quase 11 anos de tribunal. Mas, vá lá, assim acontece com todos. Já critiquei e elogiei votos seus — e, por óbvio, críticas e elogios dependem, é evidente, dos valores do crítico. Procuro fazê-lo sempre tendo a Constituição e as leis como referência. O que me move são palavras e atos, não afinidades pessoais. Já o defendi quase em absoluta solidão na imprensa. Fiz porque quis. Porque achei certo. Se voltar a acertar, elogio outra vez.

Toffoli vive, sem dúvida, um mau momento. Ou, então, vive seu "momentum" — aquele em que o indivíduo finalmente se encontra com a sua verdade. Ou em que esta lhe surge à frente, revelada. E a sua verdade, à diferença do que sua história pregressa sugere, parece estar não com o PT e com as esquerdas, mas com Jair Bolsonaro e suas milícias digitais, que o atacam dia sim, dia também. Por mim, estaria apenas com a Constituição, com a democracia, com o estado de direito.

Ou, então, sente especial prazer intelectual em evidenciar que nada deve àqueles que tiveram influência definitiva em fazer dele quem é. O ministro sabe que, sem o amparo político com que contou, ou não teria ido tão longe ou teria de ter empregado muito mais tempo e energia para chegar aonde chegou.

A guinada não é um acontecimento assim tão raro. Trata-se de uma espécie de "Síndrome de Lacombe Lucien", em que a vítima se deixa convencer inteira e irremediavelmente pelas verdades opostas àquelas que o fizeram ser quem é — ou quem era, já que um novo indivíduo vem à luz, e o que havia antes se torna uma casca descartável. Tudo indica ser esse o caso de Toffoli. Jovem ainda, talvez corrija o rumo. Nada indica.

No domingo, mais uma vez, Jair Bolsonaro estimulou um ato, e o prestigiou pessoalmente, às portas do Palácio do Planalto, sede do Poder Executivo, em que se pregou abertamente o fechamento do Congresso e do Supremo. Se, com certa largueza de juízo, pode-se livrar da imputação de crime aqueles que simplesmente compareceram à manifestação, o mesmo não se aplica a seus organizadores.

São criminosos. Atacam os fundamentos da Constituição e incidem em crimes tipificados, por exemplo, pela Lei de Segurança Nacional. Não é diferente com o presidente da República, que estimulou e prestigiou a manifestação. Falando a seus seguidores em "live" transmitida na rampa do Palácio do Planalto, Bolsonaro exaltou os manifestantes que defendiam golpe de Estado e ameaçou ele próprio o país, e o Supremo em particular, presidido por Toffoli, com os canhões. Lá se via o chefe do Executivo a anunciar que as Forças Armadas estavam com ele. Além dos crimes comuns, incidia também em crime de responsabilidade.

Tão acintosa foi a atuação do presidente e tão evidente a ameaça, falando em nome das Forças Armadas, que o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, teve de emitir mais uma nota. Defendeu, claro!, a independência entre os Poderes, mas também rechaçou qualquer possibilidade de as Forças Armadas se desbordarem de sua função constitucional.

Na ocasião, dois profissionais do Estadão — o fotógrafo Dida Sampaio e o motorista Marcos Pereira — foram agredidos a socos e pontapés. Dida chegou a cair. No chão, não cessaram as agressões. Ministros do Supremo se manifestaram, acusando a agressão covarde: Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Até Hamilton Mourão, vice-presidente e general reformado, expressou seu inconformismo.

De Dias Toffoli, ouviu-se apenas um eloquente silêncio. As razões por que se cala são insondáveis. Ou nem tanto. É sabido ser ele o principal interlocutor de Jair Bolsonaro no tribunal. É preciso saber até onde essa interlocução mais confunde do que elucida as ideias do próprio presidente. Digamos, para efeitos de pensamento, que o doutor não queira banalizar o recurso da nota oficial, reservando-a para situações mais graves. Quais?

Contra eventual golpe de estado, é certo, uma nota seria de suprema inutilidade, não é mesmo?

A DEFESA DA DITADURA

Na segunda, quando seu silêncio ecoava ou como concordância com o que se viu ou como covardia ou alienação, ele, no entanto, preparava um pronunciamento. Redigia, na verdade, uma espécie de repto contra a decisão de Alexandre de Moraes, que havia suspendido a posse de Alexandre Ramagem no comando da Polícia Federal. E escolhia como instrumento para contraditar o colega de tribunal o pior meio, a pior causa, a pior tese. A que me refiro?

A juíza Moniky Mayara Costa Fonseca, da 5ª Vara Federal do Rio Grande do Norte, havia determinado que o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, que foi assessor de Toffoli, retirasse da página do ministério uma manifestação assinada pelo próprio ministro e pelos três chefes militares exaltando o golpe de 1964, chamado, pateticamente, de "marco da democracia". Houve recurso, e a decisão da magistrada foi ratificada pelo TRF-5.

A questão foi parar, então, nas mãos de Toffoli. Ele não hesitou: cassou a liminar (íntegra de sua decisão aqui). Será que, numa democracia, deve-se permitir que um ministro de Estado e três chefes militares façam a defesa aberta de um regime que fechou o Congresso, pôs fim às liberdades públicas e individuais, suspendeu eleições, torturou e matou? Vocês sabem a resposta: é claro que não! Em que outra democracia do mundo se assistiria a exotismo assim?

Mas nem vou lhes tomar o tempo com isso. É evidente que uma democracia não pode ser democrática a ponto de abrigar sabotadores de seu próprio ordenamento. O único regime em que tudo pode — e, pois, nada do que diga respeito às liberdades é admitido — é a tirania.

A DECISÃO DE TOFFOLI

Se o mérito da decisão é lamentável, os termos em que ela veio a público pela pena do presidente do Supremo são uma agressão ao bom senso.

Toffoli foi incapaz de censurar um ato em defesa do golpe militar, que contou com a participação entusiasmada do presidente e em que profissionais da imprensa foram espancados. Mas, em defesa do direito que teria o ministro e os chefes militares de defender um regime ditatorial, escreveu o presidente do Supremo:

"Não parece assim adequado exercer juízo censório acerca do quanto contido na referida ordem, sob pena de indevida invasão, por parte do Poder Judiciário, de seara privativa do Poder Executivo e de seus Ministros de Estado.
(...)
As decisões judiciais ora atacadas, destarte, representam grave risco de violação à ordem público-administrativa do Estado brasileiro, por implicar em verdadeiro ato de censura à livre expressão do Ministro de Estado da Defesa e dos Chefes das Forças Militares, no exercício de ato discricionário e de rotina, inerente às elevadas funções que exercem no Poder Executivo e sobre o qual não parece adequada a valoração efetuada por membros do Poder Judiciário.
"

É realmente comovente ver o cuidado e o zelo com que Toffoli trata do direito à livre expressão dos que dispõem de canhões, lastimando que sejam alvos de "censura", mesmo quando usam uma página do Estado brasileiro para defender a ditadura. Não obstante — ou por isso mesmo? — silencia quando profissionais desarmados, no exercício de sua função, são espancados por outros defensores da... ditadura!

É evidente que o ministro está fazendo uma escolha.

RECADO E VOTO FORA DO LUGAR

Alheio à defesa da ditadura contido na tal nota, alheio ao ato do dia anterior em defesa do golpe militar, alheio à presença do presidente em tal ato, alheio à agressão sofrida pelos jornalistas, o "professor" Dias Toffoli resolveu dar uma lição aos contemporâneos sobre as esferas de competência dos Poderes, num claro recado a Moraes, seu colega de tribunal:

"Como tenho reiteradamente falado, sempre que me deparo com situações como esta, descrita nesta contracautela, nosso país vive um momento de excessiva judicialização, decorrente, em grande medida, da alta conflitualidade presente em nossa sociedade, a qual se torna cada vez mais complexa e massificada.
Apesar disso, não se pode pretender que o Poder Judiciário interfira e delibere sobre todas as possíveis querelas surgidas da vida em sociedade. E o caso ora retratado me parece um exemplo clássico dessa excessiva judicialização. Reitero, ainda uma vez, meu entendimento, agora aplicado ao caso concreto ora em análise, de que não cabe ao Poder Judiciário decidir o que pode ou não constar em uma ordem do dia, ou mesmo qual a qualificação histórica sobre determinado período do passado, substituindo-se aos historiadores nesse mister e, no presente caso, aos legítimos gestores do Ministério da Defesa, para redigir, segundo a compreensão que esposam, os termos de uma simples ordem do dia, incidindo em verdadeira censura acerca de um texto editado por Ministro de Estado e Chefes Militares.

Apenas eventuais ilegalidades ou flagrantes violações à ordem constitucional vigente devem merecer sanção judicial, para a necessária correção de rumos. Mas não se mostra admissível que uma decisão judicial, por melhor que seja a intenção de seu prolator ao editá-la, venha a substituir o critério de conveniência e oportunidade que rege a edição dos atos da Administração Pública, parecendo não ser admitido impedir a edição de uma ordem do dia, por suposta ilegalidade de seu conteúdo, a qual inclusive é muito semelhante à mesma efeméride publicada no dia 31 de março de 2019."

CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO

Eis aí. Se eu tinha alguma dúvida sobre o acerto da decisão de Moraes -- e conheço bons juristas que a contestam --, Toffoli as eliminou com seu despacho destrambelhado e sua omissão diante dos crimes cometidos no domingo.

Levasse a sério o que diz, defenderia que os historiadores, então, se encarregassem de definir, cada um a seu gosto, o caráter do golpe de 1964, não cabendo a ministros e chefes militares, regidos por uma Constituição democrática, fazer a apologia da ditadura. O veto não procurava impor aos gestores de bens públicos uma visão determinada de história, mas impedir que impusessem a sua, em clara agressão ao fundamento do documento que nos rege.

A "simples ordem do dia" poderia, ora vejam, ter exaltado os valores democráticos. Em vez disso, chamou um golpe de "marco da democracia".

Para o ministro, "cuida-se, assim, de ato inserido na rotina militar e praticado por quem detém competência para tanto, escolhidos que foram pelo Chefe do Poder Executivo, para desempenhar as elevadas funções que ora ocupam."

Assim é nas questões que dizem respeito à rotina militar e às tarefas concernentes às Três Forças. Fernando Azevedo e Silva foi escolhido, claro!, para executar em sua área a política do presidente. A de Bolsonaro é promover proselitismo golpista em quarteis? Pergunto de novo: que democracia do mundo toleraria essa afronta?

Mas vejo que já me estendo sobre o mérito da nota, que nem é objeto deste texto. Parece que vou, definitivamente, me interessar, doravante, pelo entendimento perturbado que se tem no Brasil, à direita e à esquerda, do que sejam independência e harmonia entre os Poderes num regime presidencialista. É possível que parte dos nossos males derive do fato de que se supõe que a legitimidade das urnas confere ao mandatário de turno o direito de violar os valores consagrados pela Carta sob cujo signo ele se elegeu. Comigo, não, violão!

É um debate de longo prazo.

No momento, lastimo o presidente do Supremo que se preocupa com a liberdade de expressão de quem tem canhões, mas não se ocupa de defender a liberdade de trabalho de quem dispõe só de um teclado ou de uma câmera fotográfica; que avalia que a ordem para a retirada de uma nota em defesa da ditadura pode "acarretar grave lesão à ordem público-administrativa da União", mas não vê mal nenhum em que um presidente da República, num ato ilegal em defesa do golpe militar, ameace, com os tais canhões, a própria corte que ele integra.

Toffoli se perdeu?

Talvez tenha, finalmente, se encontrado.

Resta como alternativa a rota do estado DEMOCRÁTICO E DE DIREITO.

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