terça-feira, julho 23, 2019

Toffoli é Toffoli, e o certo é o certo - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 23/07

Delação premiada se tornou a fé do denuncismo nacional


Sou antigo crítico daquilo em que se transformou o instituto da delação premiada: não um mecanismo por meio do qual colher informações capazes de levar às provas, mas um coletor de dedos na cara tratados como prova per se . O verbo de um criminoso confesso — sujeito enrascado em busca de se safar, que acusa (e, tudo logo vazado, condena) outrem não raro nem sequer investigado — de súbito convertido em alicerce de um processo criminal.

Descrevo a depravação que dá poderes à caça: sob a sanha jacobinista que verteu o combate à corrupção na panaceia que salvará o Brasil (neste ínterim, jogando a atividade política na lama, canonizando heróis e elegendo mitos), nunca os corruptos — esses homens de palavra — foram tão valorizados. Ou não estarão, associados ao Estado, lavando os próprios delitos enquanto dirigem as forças-tarefas contra inimigos e ex-aliados?

Desde que a delação premiada se tornou a fé do denuncismo nacional, uma questão — que deveria ser o freio de prudência para a moderação no uso do mecanismo — jamais se impôs: o que é um criminoso assumido, virtualmente sentenciado, ante a chance de ter seu futuro atrás das grades aliviado, senão um que entrega o que quiserem ouvir?

Um excesso, em nome de boa causa, engaja outro. E nós vamos nos quedando reféns da intimidação, muito bem explorada, segundo a qual quem protesta contra extrapolações da Lava-Jato é a favor da corrupção. Há também o espírito do tempo... Não são poucas as gentes de bem que concordam com a tese de que, frente a novos desafios, só mesmo soluções novas — assim como se estivéssemos tratando do ambiente disruptivo das startups, e não da segurança jurídica do país.

Chego ao ponto. Porque não há um só dia em que o lavajatismo — talvez o mais influente fenômeno revolucionário (não é elogio) da história brasileira — não reúna a assessoria de que dispõe para gritar que a luta anticorrupção está em risco; e isto enquanto um país paralisado, em depressão política, consente com o vale-tudo virtuoso que, para prender bandidos, dilapida a ordem legal, planta a suspeição generalizada e esgarça o tecido social.

Por exemplo: não está prevista — não sob o estado de direito — a ocorrência de investigação sem autorização judicial. No entanto, não faltam indícios de que órgãos de controle têm sido usados como ferramentas policiais, manipulados como extensão do Ministério Público para apurações informais desdobradas abaixo do radar judiciário, do que derivam quebras ilegais de sigilo e seu produto midiático apaixonante: os vazamentos seletivos à imprensa.

Pode o MP, agente estatal acusador, ter acesso a informações particulares detalhadas — inclusive de cidadãos não formalmente investigados — sem aval da Justiça? Perverter algo como o Coaf em instrumento investigativo que se move à margem das garantias individuais é se acercar do estado policial.

Neste exato instante, já acorrem aos porta-vozes os mais bem amplificados procuradores da República: o crítico estaria desinformado sobre como funcionam os órgãos de controle. O que dizer? Que esses especialistas — os que se movem em defesa do próprio poder — são os mesmos que degradaram o instituto da delação premiada, que não têm restrições ao desempenho de um juiz que, contra a letra da lei, sugere condições à negociação de um acordo de colaboração que lhe caberia (ou não) homologar e que nem sequer veem impropriedade em um magistrado tomar lado, às escâncaras, num processo que comanda.

Pergunto: qual é o problema de o MP, ao receber os relatórios, por exemplo, do Coaf, e diante de algo suspeito (identificado a partir de dados globais), pedir a um juiz a quebra de sigilo (por meio da qual ter acesso às operações pormenorizadas)?

Como não há resposta senão uma que confirmará que os procedimentos estavam, digamos, pouco iluminados, a saída será sempre atacar aquele que acendeu a luz. Sei de quem se trata.

Dias Toffoli é Dias Toffoli é Dias Toffoli é Dias Toffoli — a ênfase aqui a serviço do alerta. Da mesma maneira que, quando do inquérito — aquele, autoritário, sem objeto de investigação definido — que resultaria na censura à revista “Crusoé”, o ministro agiu em causa própria, para intimidar a imprensa, é possível que tenha atuado do mesmo jeito agora, para se proteger e aos seus, ao determinar que órgãos de controle não podem compartilhar informações sigilosas sem autorização judicial. É mui possível. Isso, porém, não mina o fundamento corretíssimo da decisão.

De modo que: tendo a motivação oculta que tiver, da primeira vez o presidente do Supremo errou gravemente, escrevendo uma das mais tristes páginas da história do STF; tanto quanto, desta, acertou, protegendo, na prática, o indivíduo — circunstancialmente, também Flávio Bolsonaro — da sanha punitivista que sequestrou o país.

Simples assim. Next.

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