sábado, junho 29, 2019

A histórica resistência às reformas - RUBENS PENHA CYSNE

O GLOBO - 29/06

Reis temiam os inventores do progresso e vice-versa


Reformas econômicas, quando de fato necessárias, poderiam em tese ser defendidas apenas com base na sua eficiência para o país. “O bolo (PIB) final será maior para todos”, deveria ser argumento suficiente para o agente da mudança. Ocorre que as ações de cada grupo de interesse não se baseiam no tamanho esperado do bolo. Mas sim no tamanho de sua própria fatia. Via de regra, se a fatia esperada para amanhã, com reforma, for menor do que a de hoje, sem reforma, o respectivo grupo vota e age contra. Independentemente de quanto o país como um todo possa crescer.

Imobilismos gerados pela ação de atores conflitantes, diga-se de passagem, não são inerentes nem ao Brasil nem aos tempos atuais. São vários os relatos de reis que temiam os inventores do progresso e vice-versa. O rei temia os inventores porque o exercício de suas ideias reformadoras poderia fortalecer grupos políticos antagônicos, alijando-o das vantagens do seu reinado. Por outro lado, os inventores temiam o rei porque este poderia sempre usar o seu poder para confiscar-lhes, no futuro, todo o fruto do seu trabalho.

No caso dos inventores e reis, a criação de parlamentos fortes e judiciários efetivos reduziu parte da força do status quo . Mas não toda. Isso porque os próprios Poderes Legislativos e Judiciários são sujeitos a forças políticas, e estas podem se modificar quando reformas importantes são introduzidas. As recompensas futuras dos grupos que acedem às reformas não são passíveis de garantias plenas no campo legal. Demandam também acordos políticos críveis.

A gravidade do conflito entre grupos costuma se mostrar, em cada sociedade, proporcional à desconfiança e à divisão entre as partes. O Brasil, com suas desuniões centenárias de classes por poder aquisitivo e, mais recentemente, com acirramento de suas divisões políticas, passou a ocupar lugar de destaque na fila mundial do imobilismo reformista. As mais óbvias reformas, como a do saneamento básico e a da Previdência, encontram dificuldades que a razão mais simples desconhece.

A solução canônica para esse tipo de problema é tornar crível para todos que quando o bolo cresce todos poderão receber no futuro uma fatia pelo menos um pouco maior do que a atual. Fundamentais no processo são as negociações e os compromissos entre partes. Esse procedimento requer confiança e capital político.

Segue daí que, na solução canônica, aquele que quer resolver o impasse deve ser duro com as ideias que se mostraram inadequadas. Mas não pode se dar ao luxo de entrar no terreno dos revides ou agressões.

Por outro lado, não deve caminhar em demasia na direção oposta, a do consenso subserviente. Aceder além de certo ponto em negociações ou compromissos pode enfraquecer o negociador perante aqueles que estão a seu lado.

Um exemplo histórico de tentativa de conciliação geradora de uma mensagem interna de hesitação ou fraqueza, daí decorrendo forte perda de capacidade de liderança, foi dado pelo segundo presidente americano, John Adams, em 1800.

Em 1798, ele tornara públicos os relatórios da comissão americana na França, que denunciavam uma suposta tentativa de extorsão feita pelo ministro das Relações Exteriores francês. O fato gerou grande revolta americana contra a França. E garantiu a Adams um apoio popular que ele nunca antes tivera.

Dois anos depois, entretanto, o mesmo Adams resolveu adotar uma atitude de conciliação, enviando emissários à França para propor o fim das hostilidades. Perdeu seu apoio interno e passou a ser considerado traidor pelos próprios federalistas americanos que o apoiavam.

Para que as reformas brasileiras se efetivem com mais impacto e rapidez, é necessário que se alcance um ponto de equilíbrio ótimo no chamado “dilema da liderança”. Ela precisa ser suficientemente cordata para oferecer portas de saída às forças políticas que não se elegeram. Mas não tão consentânea que possa transmitir uma percepção de fraqueza de ideais àqueles que lhe conferem suporte político.

O equilíbrio é difícil, mas factível.

Rubens Penha Cysne é professor da FGV EPGE

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