quarta-feira, janeiro 31, 2018

Quatro mitos sobre a reforma tributária - MELINA ROCHA LUKIC, VANESSA RAHAL CANADO E ANA CAROLINA MONGUILOD

O Estado de S.Paulo - 31/01

A reforma tributária volta ao centro do debate político. Várias propostas estão em discussão. A maioria, no entanto, não defende uma questão crucial no que diz respeito à tributação sobre o consumo: o melhor modelo é aquele em que tudo e todos sejam tratados de maneira igual. De nada adianta uma reforma que não traga maior simplificação tributária e esta só será atingida se o novo modelo não comportar exceções, regimes especiais e alíquotas diversificadas, nem diferenciação de qualquer natureza entre os setores. Na defesa de um sistema tributário mais slim – no termo cunhado por Rita de La Feria – algumas falácias devem ser desconstruídas.

A primeira é a que defende a diferenciação de alíquotas conforme o produto. Atualmente, a diversidade de regimes e alíquotas tem trazido como consequência uma maior complexidade do sistema, um aumento da insegurança jurídica e da litigiosidade administrativa e judicial.

É impossível que a lei traga um rol exaustivo de todos os produtos existentes e que poderão vir a existir. Sempre haverá espaço para interpretação quanto ao enquadramento de determinado produto em determinada alíquota ou regime especial. Os “crocs” são sandálias de borracha ou sapatos impermeáveis? Barrinhas de cereais são produtos de confeitaria ou preparações de cereais? Esses são só alguns exemplos de discussões recentes no Brasil.

Nem as empresas, muito menos os órgãos do poder público, devem perder tempo e recursos com esse tipo de discussão. Um modelo de tributação sobre o consumo deve evitar essas diferenciações, para que o sistema se torne mais eficaz, simples e previsível.

Outra falácia é a de que os produtos essenciais devem ser menos onerados para que a carga tributária não se concentre nos mais pobres. De acordo com a Constituição da República, a tributação sobre o consumo deve ser seletiva em função da essencialidade do produto. Ou seja, produtos mais essenciais deveriam ser desonerados ou menos tributados. Acontece que, na prática, não funciona assim. Primeiro, porque a definição do que é essencial e do que não é, além de subjetiva, não é fácil. Energia elétrica, “bem” que deveria ser considerado dos mais essenciais, sofre altíssima tributação por questões de facilidade de arrecadação. Além disso, temos ao menos 27 diferentes conceitos de bem essencial nas legislações dos Estados para fins de menor tributação. Em segundo lugar, porque ao desonerar a cesta básica estamos, na verdade, dando um grande benefício aos mais ricos, que consomem muito mais que os mais pobres em termos nominais. O inverso também é verdadeiro: ao tributar produtos supérfluos mais pesadamente, prejudicamos os mais pobres que também consumem tais produtos – por exemplo, artigos de perfumaria.

É claro que nesse debate devemos considerar que nosso sistema, ao contrário da maior parte dos países, concentra a carga tributária nos impostos sobre o consumo e isso faz com que as famílias pobres paguem, em relação à sua renda, mais tributos do que as famílias mais ricas. Nosso sistema é, sim, regressivo. A solução, no entanto, não é estipular diferenciações na tributação indireta, mas reestruturar o sistema de tributação sobre a renda e a propriedade (nos quais a progressividade pode ser mais bem aplicada) e utilizar o dinheiro arrecadado sobre o consumo dos mais ricos para aumentar os recursos das transferências de renda aos mais pobres, por exemplo.

A terceira falácia é a necessidade de diferenciação entre os setores. Nos países que adotam modelo IVA (imposto sobre valor adicionado), produção, comércio e serviços são submetidos às mesmas regras e alíquotas. O setor de serviços no Brasil argumenta que os demais setores – indústria e comércio – têm direito a créditos dos seus insumos, enquanto os serviços não têm. Essa afirmação desconsidera toda a lógica da tributação indireta sobre o consumo, em que o ônus econômico do tributo recai a priori sobre o consumidor final. Isso quer dizer que o IVA não onera as empresas, que funcionam como meros agentes arrecadatórios, incluindo no preço o valor desse tributo. Essa percepção também desconsidera o fato de que o valor adicionado dos serviços é concentrado numa única etapa, pois geralmente fornecem diretamente ao consumidor final. Já os demais setores estão estruturados em cadeia e o recolhimento do tributo é feito ao longo dela com base no valor adicionado em cada etapa. Além disso, trazer o setor de serviços – mais de 70% do nosso PIB – para a base de um IVA possibilitará que a carga dos demais setores seja diminuída, o que trará enorme benefício à economia – maior competitividade no cenário internacional e maior possibilidade de atração de investimentos.

A última falácia diz respeito à inadequação dos tributos sobre o consumo diante das novas tecnologias. De fato, pensar a tributação da economia digital à luz do nosso atual sistema é tão anacrônico quanto considerar que um computador possa ser movido a carvão. Não tem como funcionar. A distinção outrora clássica entre indústria, comércio e serviços, na qual se baseou nosso sistema tributário na década de 1960, não serve mais para explicar fenômenos como Netflix, Uber, Airbnb ou mesmo Amazon. Isso não significa, contudo, que o IVA seja um imposto velho para um mundo novo. Com base ampla, flexibilidade no design normativo e cooperação internacional para arrecadação nas importações, não só essas, mas também as futuras tecnologias digitais estariam capturadas pela tributação sobre o consumo.

Enfim, essas falácias não podem mais dominar o debate e continuar a impedir a adoção de um novo sistema tributário mais racional, mais slim: eficaz do ponto de vista arrecadatório e econômico e que traga mais isonomia e segurança jurídica aos contribuintes.

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