terça-feira, julho 26, 2016

Sem fim o atoleiro de processos - ALOÍSIO DE TOLEDO CÉSAR

ESTADÃO - 26/07

Justiça demorada, sempre se repete, chega com um gostinho de injustiça



O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, costuma referir-se a uma curiosa reunião, havida em seu gabinete, com um ministro japonês que o visitava. Dele aprendeu algo surpreendente: para um japonês, disse-lhe o ministro, é motivo de humilhação ter de recorrer ao Judiciário e fazer o Estado gastar, porque representa a confissão de que não teve competência para resolver o seu problema pessoalmente.

Fiel a essa conduta e a essa cultura, o japonês se esforça para obter conciliação e, assim, evitar a vergonha de ter de acionar juízes e provocar trabalho e despesas para o Estado. A dignidade, no caso, está em evitar o processo judicial, e não em provocá-lo.

Entre nós, infelizmente, ocorre exatamente o contrário. Basta haver uma desavença com o vizinho, por exemplo, para que nossos patrícios corram ao escritório de um advogado e iniciem uma ação judicial, circunstância que naquele momento proporciona alguma satisfação, mas ao longo dos anos só causa desagrado.

A consequência dessa cultura demandista está em que, para uma população de pouco mais de 200 milhões de habitantes, temos à espera de julgamento aproximadamente 100 milhões de processos judiciais, ou seja, um processo para cada dois brasileiros.

Temos 100 milhões de processos na espera porque a fila não anda, por força de uma legislação processual que herdamos dos antigos romanos e de nossos antepassados portugueses. São poucas as decisões terminativas. Há recursos e mais recursos, legalmente previstos, que condenam os litigantes a aguardar até por décadas o desfecho da demanda.

Ao contrário de nós, o sistema anglo-saxão é muito mais simples e permite resolver quase sempre com rapidez os processos em julgamento. Com isso se consolida a imagem de respeito e credibilidade necessária ao juiz. Justiça demorada, sempre se repete, chega com um gostinho de injustiça.

Os antigos romanos diziam que a Justiça, se é rápida, não é segura e se é segura não é rápida. Mas isso para a realidade daquela época, em que o Direito ganhou grande expressão, mas o número de processos não era tão volumoso.

Entre nós, a demora no julgamento final é atribuída pela maioria das pessoas à ineficiência ou mesmo preguiça do juiz. Ou, então, ao Poder Judiciário, pela incapacidade de resolver o problema. Poucos se dão conta de que os juízes estão submetidos à lei e não podem deixar de cumpri-la. E que cada etapa prevista no sistema processual tem de ser rigorosamente seguida, sob pena de nulidades.

Não é lícito ao juiz julgar contra a lei e suprimir-lhe os erros e lacunas, ou mitigar a rigidez com a finalidade de praticar justiça mais rapidamente. Diante de uma lei obsoleta ou manifestamente iníqua, que não mais corresponda às condições sociais do momento, poderá o magistrado socorrer-se para a solução do conflito das demais fontes de Direito – inclusive da equidade.

Isso com frequência se verifica. Mas em nenhuma hipótese alguma poderá o magistrado afastar-se da realidade objetiva. O momento que nós, brasileiros, vivemos, com 100 milhões de processos aguardando julgamento nas pilhas dos tribunais, demonstra claramente que a legislação processual em vigor, com sua aplicação rígida, está em desacordo com a nossa realidade e causa mais danos do que benefícios à ordem pública e social.

Em suma, as leis processuais a que os juízes são obrigados a obedecer estão a cada dia mais longe de nos tirar do atoleiro de 100 milhões de processos – e isso é grave, sobretudo porque não se enxerga nos horizontes uma modificação que altere essa realidade.

As modificações que têm sido introduzidas no sistema, graças aos esforços dos processualistas, são apenas cosméticas, assim como se faz para colorir as faces do defunto a fim de torná-lo mais bonito na hora do velório. Ante as duas realidades, a montanha de processos, de um lado, e a litigiosidade crescente, de outro, verifica-se entre os legisladores uma timidez assustadora.

A forma do Estado brasileiro, calcada no sistema que nasceu na Grécia antiga e foi exaltado por Montesquieu, sendo adotado na grande maioria dos países ocidentais, previu que o Legislativo somente legisle, sem julgar ou executar as leis; o Judiciário, somente diga o Direito em face dos conflitos, sem poder legislar; e o Executivo se limite à atividade administrativa do Estado, sem legislar ou julgar.

Esse equilíbrio é notável e se presta a apontar claramente as vocações totalitárias de governantes, quando se atrevem a legislar e a julgar, como no período absolutista da nossa História. Entre nós, mantida a harmonia do Estado, com a independência dos Poderes, a tragédia das filas de processos não sofre mudança alguma, de vez que a edição de leis saneadoras fica na dependência do Congresso Nacional – esse que todo dia, a toda hora, nos surpreende e escandaliza.

Curioso lembrar que a decisão judicial, na maioria dos casos, desagrada, no mínimo, a 50% dos litigantes, quer dizer, a parte que perde raramente se conforma com a derrota e a atribui a deficiências ou falta de isenção do juiz. Em alguns casos, até mesmo a parte vencedora fustiga o magistrado responsável pela decisão, ao fundamento de que, como tinha razão, por que demorou tanto para tomá-la?

A demora na decisão judicial, enfim, atua sempre em desfavor do juiz, causando a indignação das partes – e isso é péssimo para o Judiciário. Ao contrário dessa lentidão, que é a regra, o surpreendente Sergio Moro, no Paraná, dá exemplo marcante de eficiência, sempre agindo com coragem, rapidez e sentimento de justiça. Infelizmente, propaga-se a ideia de que ele é o único – e isso é injusto com os demais, que igualmente se empenham na luta por melhor Justiça.

* ALOÍSIO DE TOLEDO CÉSAR É DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TJ SP, FOI SECRETÁRIO DA JUSTIÇA DO GOVERNO GERALDO ALCKMIN.

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