segunda-feira, outubro 27, 2014

Sonhos complacentes - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 27/10


Não ficamos mais bobos quando somos mais complacentes com as bobagens em que cremos?


Não sou um daqueles céticos que acham que religião é coisa de gente boba. Apesar de ter aprendido já no jardim da infância a crítica que os três cavaleiros do ateísmo contemporâneo fizeram à religião, Marx, Nietzsche e Freud, e de já tê-la assimilado ao café da manhã, estudo o bastante da produção filosófica de algumas religiões pra saber que nem tudo nelas é bobagem.

Portanto, não sou aquele tipo de ateu chato que ridiculamente mede a inteligência de uma pessoa por sua "crença na ciência".

E qual é essa crítica dos cavaleiros do ateísmo contemporâneo? De modo sintético, seria a seguinte: depois de Marx, se você é religioso, você é um alienado explorado por picaretas espirituais. Não podemos não concordar em grande parte com o que o velho barbudo diz sobre isso.

Depois de Nietzsche, se você é religioso, você é um covarde ressentido que não aceita a falta de sentido da vida e o abandono cósmico. Não podemos não concordar em grande parte com o que o filósofo do martelo diz sobre isso.

Depois de Freud, se você é religioso, você é um adulto bobo que não conseguiu lidar com os fatos de que seu pai não é o pica das galáxias e sua mãe não te ama incondicionalmente, daí Deus ser esses pais ideais. Não podemos não concordar em grande parte com o que o sábio de Viena diz sobre isso.

Preocupo-me aqui, especificamente, com um fenômeno que chamaria, carinhosamente, de "masturbação espiritual", e que se caracteriza por um enorme narcisismo a serviço de uma falsa busca espiritual do tipo: o universo conspira a meu favor e Deus trabalha pra minha felicidade. A "masturbação", aqui, representa exatamente o fato de que a masturbação é uma "relação" entre você e você. Na busca espiritual narcísica não existe qualquer transcendência, só a imanência entediante de um "eu mesmo" deslumbrado consigo mesmo.

Quando você ouvir falar, num jantar inteligente, que alguém acha todo mundo lindo, que os jovens hoje são mais inteligentes e abertos à espiritualidade (quando nem conseguem criar vínculos mais duradouros com nada) e nada no "relato dessa busca espiritual" trair uma certa percepção de desespero, uma crise de fé em si mesmo, uma angústia moral, um horror qualquer, você está assistindo a uma sessão de masturbação espiritual.

Outro dia, conversando sobre isso com minha mulher, que faz doutorado sobre o psicanalista inglês D. W. Winnicott e o sofisticado sociólogo alemão Norbert Elias, ela me leu esse maravilhoso trecho de um livro de Elias, "A Solidão dos Moribundos", da editora Zahar. Leia comigo:

"Hoje, com o imenso acúmulo de experiência, não podemos mais deixar de nos perguntar se esses sonhos complacentes não têm, a longo prazo, consequências bem mais indesejáveis e perigosas para o seres humanos em sua vida comunal que o conhecimento bruto e sem retoques".

Elias, neste período, discute em que medida o aumento da imaginação, como fruto da evolução, não teria vindo em socorro da incômoda e crescente consciência da finitude e da morte, nossos fantasmas humanos, demasiado humanos. A questão, dita de outra forma, seria: não estamos ficando mais bobos à medida que somos mais complacentes com as bobagens em que acreditamos? Alguns exemplos de bobagens: "energias do universo", "criança cristal", "geração índigo", "pedras energéticas", "xamãs da Vila Madalena".

Ouso responder que sim. Essa moçada é, na verdade, gente sem compromisso com nada e complacente com suas manias egóicas.

Passam a vida "buscando a si mesmos" assim como quem vai a Orlando brincar de ser criança (nada contra Orlando, tudo contra a punheta espiritual).

Morrendo de medo da responsabilidade pela vida, diante do horror ao silêncio de um universo indiferente (Nietzsche), agoniados com a "castração" dos pais (Freud), preferindo gastar dinheiro com gurus inócuos (Marx), essa turma faz mais mal ao mundo do que quem diz diretamente na sua cara: o que você acredita é uma bobagem!

Mas, de repente, paro e penso: não estarei eu caindo na velha arrogância cética? Não deve a filosofia nos ensinar a humildade diante da dor?

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