terça-feira, agosto 26, 2014

Marina e a democracia - EDITORIAL O ESTADÃO

O ESTADO DE S.PAULO - 26/08


"É necessário criar mecanismos de participação popular que revigorem a democracia representativa, aumentando sua legitimidade." Essa vaga afirmação de princípios consta - e dela quem há de discordar? - do texto prévio do programa de governo de Marina Silva a ser divulgado, segundo se anuncia, até a próxima sexta-feira. Esse texto foi antecipado pelo Estado no último domingo e precipitou reações contraditórias, especialmente no que se refere à questão da formação de conselhos populares destinados a promover o "controle social" da atividade política, o mesmo tema do polêmico decreto de Dilma Rousseff que está sendo examinado pelo Congresso Nacional.

No mesmo dia, Marina Silva se dispôs a colocar água na fervura, tentando desvincular sua proposta do decreto de Dilma. Saiu-se, porém, mais uma vez, pela tangente da generalização. A intenção é "aprofundar a democracia" por meio da "valorização das instituições e que essas instituições e as representações políticas possam estar ligadas à sociedade brasileira". Mais uma vez: discordar, quem há de?

A generalização pode ser um recurso eficaz, especialmente durante campanhas eleitorais, para tornar acessíveis e atraentes ideias complexas. Criar signos de fácil compreensão é um exercício também conhecido como "falar a linguagem do povo". Mas é também a melhor maneira de escamotear as verdadeiras intenções de quem os propõe. A generalização pode ser, pura e simplesmente, uma maneira de dissimular o engodo.

É o caso desse decreto do governo petista que institui a Política Nacional de Participação Social (PNPS). O decreto não chega a ser novidade, uma vez que conselhos já existem, e há muito tempo, em todos os âmbitos e níveis da administração pública. Tais conselhos não têm o poder de impor políticas, mas apenas o de ampliar a "participação popular" na gestão da coisa pública, inclusive fiscalizando o trabalho dos gestores. A novidade é a óbvia intenção do lulopetismo de usar seu poder hoje quase hegemônico para influir fortemente na estruturação desses conselhos - que serão coordenados diretamente pelo Palácio do Planalto, por intermédio da Secretaria-Geral da Presidência - e manipulá-los como instrumentos de pressão política para consolidar e perpetuar essa hegemonia. Em outras palavras, por simples decreto revoga-se o dispositivo constitucional que consagra a representação popular nos órgãos de soberania nacional, transformando os conselhos em centros de decisão até mesmo mais efetivos que o Congresso Nacional, eleito pelo voto universal.

Isso significa que, reeleita Dilma Rousseff, os petistas disporão de pelo menos quatro anos para montar nas entranhas da administração federal uma ampla estrutura de pressão política capaz de garantir-lhes o exercício de um forte poder paralelo mesmo que venham a ser apeados do poder formal por decisão das urnas.

Pela voz de seu então líder, Eduardo Campos, o movimento político que hoje, por injunção da "providência divina", Marina Silva comanda já se havia posicionado claramente contra a mentira dissimulada na proposta petista. Em junho, Eduardo Campos reagiu duramente à iniciativa do Planalto, denunciando a incoerência entre "a palavra e a atitude" de Dilma Rousseff: "Essa palavra e esse decreto não têm nada a ver com o que o governo pratica no dia a dia. É um governo fechado, que não tem as portas abertas para o diálogo".

Não obstante, Marina Silva chegara a defender o decreto da PNPS e essa posição em certa medida foi levada em consideração no texto prévio do programa de governo do PSB. Agora cabeça de chapa e forçada a harmonizar suas convicções pessoais com as do partido que a hospeda, Marina recuou, justificando-se com o argumento de que o documento a que o Estado teve acesso é apenas preliminar.

O PSB, como todo mundo, apoia o fortalecimento da democracia, mas não quer ouvir falar do decreto de Dilma Rousseff. O candidato a vice, Beto Albuquerque, pessebista histórico, colocou o dedo na chaga: "A proposta de Dilma é diferente. Você não pode me dizer que vai ter controle social sem me dizer quem vai controlar o eleito. Isso é muito perigoso". Melhor assim.

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