quinta-feira, março 06, 2014

Risco de desestabilização global a partir da Ucrânia - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 06/03

Impasse entre Ocidente e Rússia mostra potencial para brecar a incipiente recuperação da zona do euro e teria sérias consequências para o Brasil



A Guerra Fria ameaçava o mundo com uma hecatombe nuclear. A crise entre o Ocidente e a Rússia sobre a Ucrânia o ameaça com uma recaída na Grande Recessão de 2008, da qual ele ainda não se recuperou. A catástrofe nuclear foi evitada pela dissuasão: se EUA ou URSS iniciasse um ataque atômico, destruiria o inimigo, mas também seria destruído. No impasse de agora, as armas são tropas descaracterizadas, ameaças e blefes, pressões políticas e econômicas, pacotes de ajuda de bilhões de dólares e planos para sanções, num intrincado xadrez diplomático.

A Ucrânia é um país falido e dividido ao meio por afinidades com a União Europeia, a Oeste, e a Rússia, a Leste. Após uma rebelião popular com apoio ocidental, o poder está precariamente em mãos pró-UE. O que desespera a Rússia e enfurece seu líder, Vladimir Putin, que acalenta um projeto pessoal de poder baseado na recuperação pelo menos de parte do poder e do prestígio do antigo império soviético. A Ucrânia não poderia ficar de fora da União Eurasiática criada pelo Kremlin.

Putin retaliou de várias formas, sendo a mais contundente a ocupação mal dissimulada da Península da Crimeia, que foi russa até 1954 e onde está baseada até hoje a frota do país no Mar Negro. “Inadmissível”, respondeu o Ocidente, mas com entonações diferentes. Se os EUA dizem que Putin “não engana ninguém” e brande ameaças de sanções, a UE, que compra de Moscou mais de 30% do gás que consome, usa tom mais brando. Todos perdem se a diplomacia falhar em contornar a crise.

A UE é a parte mais fraca entre os países avançados pós-2008. Só agora ela começa a dar sinais de saída da crise que elevou o desemprego a estonteantes 28% na Grécia, por exemplo. Um fracasso na montagem do pacote de resgate à Ucrânia e um eventual default do país desestabilizariam os mercados financeiros e arrastariam para baixo novamente a zona do euro. Isto poderia ocorrer também com uma retaliação russa que restringisse a venda de gás à UE e/ou subisse seu preço. Mesmo os EUA, cuja recuperação está mais consolidada que a da UE, não resistiriam à recaída de seu grande parceiro comercial.

Pior para países emergentes, como o Brasil, que sofrem perda de confiança na solidez de suas economias. No caso brasileiro, seria fatal um retraimento ainda maior tanto dos mercados financeiros quanto dos investidores internacionais.

A comunidade internacional não pode tolerar que um projeto megalomaníaco de Putin ameace jogar o mundo no caos. Dissuadi-lo, entretanto, é uma tarefa complexa. Uma das formas é deixar bem claro o prejuízo que sanções poderiam acarretar para a economia russa, que já não vive um bom momento. Os EUA poderiam usar seus novos recursos energéticos (gás não convencional) para minimizar o impacto de uma eventual redução no fornecimento russo à Europa, com resultados catastróficos para Putin. Mas isso leva tempo, e a crise precisa ser debela já.

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