sábado, março 08, 2014

Retiro de carnaval - ZUENIR VENTURA

O GLOBO - 08/03

Há muito um livro não arrebatava tanto minha atenção quanto ‘O homem que amava os cachorros’, de Leonardo Padura



Mais uma vez nesses últimos três anos, desertei dos desfiles das escolas de samba, traindo uma fidelidade que mantive durante décadas. Só que agora fugi para a serra, para uma espécie de retiro espiritual. Fiz o que há muito não fazia, como tomar banho de chuva torrencial, ler um enorme livro sem ser interrompido pelo telefone e ver séries estrangeiras. Não aguentava mais ficar sem saber o que dizer nas discussões sobre qual era melhor, “Homeland”, ou “The Tudors”? “House of cards” ou “Breaking bad”? Ou então “que temporada você já viu?” Ignorante e obtuso, a primeira vez que ouvi essa pergunta, quase respondi: “Ainda estou no verão.” Me dei conta a tempo de que a pergunta tinha outro sentido, claro. Agora, graças a amigos que, com empréstimos, promoveram minha atualização, já sei a temporada em que está cada uma das séries e mais: posso participar de qualquer conversa com observações até pertinentes. Só não decidi em qual delas minha preferência vai recair.

As séries, Mary e eu víamos à noite, varando madrugadas. De dia eu lia. Passava os olhos no jornal, fazia uma rápida caminhada e mergulhava numa leitura da qual não conseguia me desprender durante horas. Há muito um livro não arrebatava tanto minha atenção quanto “O homem que amava os cachorros”, de Leonardo Padura. Ao contrário das séries, a sensação no caso é que só eu estou lendo essas 700 páginas, sem poder comentar com alguém. Ainda não terminei e não sei se vou ter a competência de analisá-lo um dia, tal a extensão e complexidade do tema e da época que aborda, embora a narrativa tenha a fluência e a sedução de um romance policial. A história central é a preparação e o assassinato de Leon Trotski a mando de Stalin, mas o pano de fundo se expande pela Guerra Civil da Espanha, pela irrupção do nazifascismo, pela Europa da pré-guerra e pelos horrores do stalinismo.

Mesmo tanto tempo depois de ter sido desmascarado o ditador soviético, o livro do cubano Padura (cuja visão crítica não poupa o país em que vive) ainda consegue revelar desvãos sinistros desse regime que foi uma das matrizes do fundamentalismo ideológico. O retrato que faz de Stalin, expondo sua paranoia e sadismo, é devastador, porque mostra como ele foi capaz de manter o poder impondo o terror e de dominar corações e mentes por meio da mentira, da manipulação e da farsa. É incrível como esse monstro, que disputou com Hitler o título de genocida do século XX, erigiu-se em “grande guia” não só da massa, mas também de intelectuais e artistas no mundo todo, inclusive no Brasil.

Sobre a última coluna, a educadora Silvana Gontijo observa que é preciso enfatizar entre os efeitos nocivos da dependência digital a perda dos “vínculos empáticos”, da “conexão emocional”, ou seja, a falta do contato físico, do olho no olho. “Não há maquina que substitua isso.”

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