segunda-feira, fevereiro 03, 2014

Um ou dois gestos - LUÍS EDUARDO ASSIS

O Estado de S.Paulo - 03/02

A cena é usual no verão paulistano. Após um calor de estourar salsicha, vem a chuva torrencial no início da noite. O helicóptero a serviço do programa sensacionalista de TV flagra um ônibus parado no meio da enchente. O nível da água se aproxima das janelas. As pessoas acenam, aflitas. O apresentador explora a possível tragédia ao vivo, mas logo tranquiliza: os bombeiros devem já estar a caminho. Se não chegaram até agora, é porque estão atendendo outra ocorrência, mais grave. Logo virão e tudo vai dar certo. Não se sabe de onde ele tira essa informação. Os bombeiros gozam do benefício da dúvida. Não há crítica à morosidade no atendimento. Não há a tradicional peroração sobre o volume de impostos pagos e a má qualidade dos serviços públicos. Não se insinua que os bombeiros estão acabando uma partida de sinuca. São heróis que se atrasaram, mas ainda heróis. O nome disso é credibilidade.

A inflação de 2013 fechou em 5,91%, sete centésimos acima do ano anterior, bem abaixo do índice de 2011 (6,5%) e exatamente igual ao indicador de 2010. Foi o suficiente para que analistas mais exaltados caracterizassem essa performance como um "fiasco" ou um "fracasso", lembrando que a inflação pode subir mais e ficar fora de controle. "Não é pelos sete centésimos", poderiam dizer, sublinhando que o quadro geral da economia brasileira no ano passado se deteriorou. Ainda assim, há um evidente exagero em antecipar o fim do mundo. O nome disso é falta de credibilidade.

A presidente Dilma Rousseff recentemente atribuiu o pessimismo à guerra psicológica, misturando um conceito bélico a uma conveniente teoria conspiratória. Mas o fato é que o governo construiu o seu descrédito com esmero por meio de pensamentos, palavras e obras. A desconfiança não é obra do acaso nem foi ardilosamente forjada. Basta nos lembramos das inumeráveis previsões erradas sobre o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Ou da tentativa patética de maquiar os resultados fiscais. Ou da estultice de tentar tabelar a taxa interna de retorno nos leilões de concessão. Ou das idas e vindas, desencontros e rodopios da política cambial. Pagamos hoje pelos erros que o governo cometeu - mas a perda de credibilidade faz com que paguemos também pelos erros que o governo parece ter cometido. Somos onerados pelo malefício da dúvida. Assim fica caro.

Reverter este quadro não é simples. De nada adianta propugnar a esta altura por reformas de fôlego. Elas não vingaram antes, quando as vacas engordavam, e não será agora que poderão prosperar. O raio de manobra da política econômica ficou muito estreito. É néscio supor que o governo empurraria o País para uma recessão, às vésperas de eleições presidenciais, para colocar a inflação no centro da meta. Também é inviável, no curto prazo, um choque de eficiência que melhore a qualidade dos serviços públicos ou medidas de fundo que alterem a estrutura dos gastos públicos (alguém se dispõe, por exemplo, a discutir por que o Tesouro Nacional gasta mais com a previdência dos militares do que com o Bolsa Família? Claro que não).

Confiança. No campo das ações práticas, pouco de novo poderá ser feito em 2014. Mas é possível ganhar pontos na batalha das expectativas, buscando a recuperação gradual da confiança dos mercados, agora mais exigentes diante da perspectiva de elevação dos juros internacionais. Um gesto talvez baste, mas o governo pode fazer dois.

Poderia, por exemplo, apoiar um dos projetos de lei que regulamentam a independência do Banco Central (BC). Para muitos efeitos práticos, o BC já conta com razoável independência, a começar pelo fato de que a Constituição federal veda, no artigo 164, que faça empréstimos direta ou indiretamente ao Tesouro Nacional. Há extensa literatura especializada com propostas de medidas de independência (uma síntese pode ser encontrada no artigo de King Banaian, Measuring Central Bank Independence: Ordering, Ranking or Scoring?).

Nosso Banco Central já tem baixa rotatividade de diretores, mesmo sem mandatos; já é o encarregado exclusivo de definir a taxa de juros; não financia gastos do governo; e conta com profissionais de grande experiência e reputação recrutados nos próprios quadros da instituição. Passa pela cabeça de alguém que Alexandre Tombini possa ser demitido porque elevou os juros às vésperas da eleição? Alguém cogita de que ele possa ser substituído por um sobrinho de um senador do PTB? Por que não formalizar tudo isso?

Outro gesto que poderia configurar um avanço institucional notável seria colocar em funcionamento o Conselho de Gestão Fiscal, previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada em maio de 2000. O objetivo deste fórum, a ser composto por representantes de todos os poderes e entidades técnicas não governamentais, é acompanhar e avaliar a política fiscal. O conselho ganharia maior substância se, ao mesmo tempo, o governo anunciasse uma meta factível e relevante como, por exemplo, eliminar o déficit nominal em três ou quatro anos. Isso não resolve nosso problema fiscal, mas poderia resgatar um mínimo de credibilidade, sem o que o anúncio de metas será apenas mais uma promessa.

Se levados a sério, esses gestos poderiam servir como antídoto ao risco de um rebaixamento das agências de rating, evitando nova desvalorização cambial, que elevaria a inflação, corroendo salários e tornando os eleitores mais dispostos a votar na oposição. Atendem, portanto, aos interesses do Brasil e, simultaneamente, ao interesse eleitoreiro do governo. Irritarão, certamente, os grupos mais à esquerda do PT, mas não a massa de eleitores, para quem estes dois temas não importam. O governo já ajoelhou no altar de Davos e beijou a cruz. Agora é só rezar.

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